Bolsonaro e o Congresso: reinvenção ou morte do presidencialismo de coalizão?
Como explicar essa aparente contradição entre a alta taxa de governismo parlamentar e um cenário de hostilidade entre os dois poderes?
O ano de 2020 se inicia como terminou 2019: marcado por episódios de conflito entre o presidente Jair Bolsonaro e o Congresso. Desta vez, a razão da disputa gira em torno do controle de fatia bilionária do orçamento. A regulação do orçamento positivo, tal como aprovada pelos parlamentares na Lei de Diretrizes Orçamentárias e vetada por Bolsonaro, reservava ao relator do projeto o controle sobre 30 bilhões do orçamento do governo federal. Em reação, Bolsonaro chegou ao ponto de convocar suas bases para uma manifestação que, dentre outras pautas, promete hostilizar abertamente o Congresso. O episódio é mais um exemplo da relação descompassada entre os dois poderes, para dizer o mínimo.
Bolsonaro de fato se negou a compor uma coalizão parlamentar de apoio ao seu Governo e, ironicamente para quem acusava o presidencialismo de coalizão de troca-troca imoral de favores, conduz as relações com o parlamento da maneira mais obscura possível. Não é necessário doutorado em teoria da ação coletiva para saber que a agregação de preferências diminui o custo transacional, ou, em outras palavras, sem partidos fortes e aglutinados, a negociação com o parlamento fica muito mais complexa e cara. Mas Bolsonaro e sua turma não são conhecidos por dar importância à ciência, ainda mais à ciência da política -- atividade que o “olavismo” associa ao comunismo.
Nesse contexto, é à primeira vista surpreendente o estudo ( http://olb.org.br/como-votaram-os-congressistas-no-primeiro-ano-do-governo-bolsonaro/) do OLB, que identifica como característica marcante desse primeiro ano de mandato uma alta taxa de governismo no Congresso. Aplicando um método consolidado na ciência política para analisar clivagens parlamentares, a equipe do OLB não apenas averiguou que o apoio ou oposição ao governo foi o motivo central de conflito entre os congressistas, como também que uma maioria substantiva havia apoiado consistentemente as propostas legislativas do Planalto em 2019. Em uma escala de 0 a 10, em que 10 representa o máximo de apoio ao governo e 0 oposição total cerrada, nada menos do que 74,4% dos deputados e deputadas apresentaram notas maiores que 7. No Senado, praticamente 50% dos titulares registraram notas 9 ou 10.
Como explicar essa aparente contradição entre a alta taxa de governismo parlamentar e um cenário de hostilidade entre os dois poderes?
O estudo (http://olb.org.br/como-votaram-os-congressistas-no-primeiro-ano-do-governo-bolsonaro/) contém pista importante para a resposta. Verificamos também que os deputados se distribuem em três grandes grupos na Câmara (que se diferencia assim do Senado, onde apenas dois grandes grupos foram encontrados). O primeiro é formado por representantes que demonstraram apoio sólido ao governo, principalmente aqueles filiados ao Novo e ao PSL (a análise ainda não mediu os efeitos da tardia cisão no PSL). O segundo grupo é o de oposição, em que se encontram parlamentares do PT, PSOL, REDE, PCdoB e, em menor medida, PSB e PDT. O terceiro e maior grupo é constituído pela massa de partidos de centro-direita, tais como PSDB, PMDB, PP, DEM e tantos outros do denominado “centrão”. O grupo, em razão de seu tamanho, foi o principal responsável pelo relativo êxito legislativo alcançado até aqui das propostas do executivo. Contudo, embora governista, ele não apresenta uma taxa tão alta quanto à do primeiro grupo, demonstrando, assim, autonomia no trato com o Planalto.
Os dois projetos que até agora foram os mais simbólicos da agenda do novo governo, a reforma da previdência e o pacote anticrime, servem de exemplo para avaliarmos o comportamento desse terceiro grupo. Os projetos são oriundos dos dois mais poderosos ministros do Planalto, Paulo Guedes, a frente do Ministério da Economia, e Sérgio Moro, Ministro da Justiça e Segurança Pública. Na reforma da previdência, houve certa convergência entre as principais lideranças do Congresso e o governo. De fato, a aprovação de reforma dessa envergadura deveu-se em grande parte ao protagonismo exercido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que articulou maioria sólida a seu favor. A atuação de Maia, entretanto, modificou o projeto em pontos importantes, limitando, por exemplo, as mudanças na previdência rural e reduzindo o tempo mínimo de contribuição originalmente proposto no projeto.
No pacote anticrime patrocinado por Moro, a interferência parlamentar foi ainda maior. Não foram aceitas, por exemplo, alterações nas regras do denominado excludente de ilicitude, a prisão após condenação em segunda instância e a criação do modelo de “plea bargain”.
Um terceiro exemplo de relativa autonomia parlamentar é o decreto de regulamentação do porte de armas editado pelo presidente Bolsonaro no começo de seu mandato. Ele foi revogado pelo próprio executivo, após o Congresso ameaçar fazê-lo por meio de decreto legislativo (aqui vale a leitura da análise da política dos decretos: http://olb.org.br/o-que-a-guerra-de-decretos-diz-sobre-a-relacao-entre-congresso-e-executivo/).
Desde o impeachment o Congresso tem se mostrado disposto a alterar a balança de poder do sistema político, movimento que se repetiu na disputa em torno à regulação do orçamento impositivo. O poder de iniciativa e autonomia sobre a execução do orçamento constituíram nas últimas décadas peça chave de um modelo centrado no executivo, que agora é questionado por lideranças parlamentares. Se em 2019 foi conveniente Maia e o Centrão que ele comanda uma atitude governista, nada garante que este ano e nos dois anos que resta a esse governo tal tendência vá se repetir.
Enquanto isso, Bolsonaro insiste em governar sem coalizão e praticamente sem partido. Junte-se a isso o fracasso das promessas de crescimento econômico e o torvelinho de absurdidades produzido diariamente pelo presidente e sua entourage, sempre dispostos a ofender gregos e troianos. A revolta do General Heleno e de Bolsonaro, e a chamada para a passeata do dia 15 de março, parecem sinais de um executivo que se enfraquece diariamente, frente a um Congresso que consegue se manter coeso e partidariamente disciplinado, a despeito de sua péssima reputação popular.
Rodrigo Maia não parece vocacionado a articular um golpe parlamentar. Mas, como diz o chavão, na política não há vazio de poder, e o comportamento do presidente está empurrando o Congresso e vários atores políticos a sonharem com o parlamentarismo como solução para uma crise profunda de governabilidade que criou. É bastante irônico ver um entusiasta do autoritarismo causar, por falta de virtude política, tamanha corrosão no poder do líder máximo da nação, o Presidente da República - cargo que acidentalmente ocupa.
Leonardo Martins Barbosa é pesquisador do OLB, Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ e Pesquisador Sênior do NECON. Estuda partidos políticos e o sistema partidário brasileiro, com ênfase na inserção do PT no sistema político nacional. Tem graduação e mestrado em História.
João Feres Júnior é coordenador do OLB e professor associado de Ciência Politica do IESP-UERJ e coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP).
Fernando Meireles é Pesquisador do OLB e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Pós-Doutorando no IESP-UERJ. É pesquisador do Centro de Estudos Legislativos (CEL/UFMG) e foi pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da University of Essex.
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