Capacitação aprimora atendimento do Judiciário a vítimas do tráfico de pessoas

A juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres destacou que a capacitação dos magistrados e das equipes interdisciplinares busca estabelecer um padrão de escuta protegida

Jeferson Melo Manuel Carlos Montenegro Agência CNJ de Notícias
Publicada em 13 de maio de 2022 às 15:21
Capacitação aprimora atendimento do Judiciário a vítimas do tráfico de pessoas

Abertura do Treinamento sobre a Escuta Qualificada de Vítimas de Tráfico de Pessoas no contexto do fluxo venezuelano no Brasil. Foto: Luiz Silveira/CNJ

Um treinamento realizado no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nesta quinta-feira (12/5) apresentou a magistrados e servidores de 14 tribunais de Justiça um conjunto de procedimentos para aprimorar o atendimento de pessoas vulneráveis que são coagidas pelo tráfico de pessoas. A capacitação foi conduzida pela Agência da ONU para as Migrações (OIM), que, desde setembro de 2021, atua em parceria com o CNJ na missão de enfrentar um crime que provoca uma série de violações aos direitos humanos, especialmente aos direitos de pessoas em migração.

A juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Peres destacou que a capacitação dos magistrados e das equipes interdisciplinares busca estabelecer um padrão de escuta protegida. “O atendimento às vítimas do tráfico de pessoas, que já se encontram em extrema vulnerabilidade, precisa ser acolhedor e apto a não gerar a revitimização. Assim, a presente atividade formativa reveste-se de extremo relevo para aprimoramento dos serviços judiciários na temática”.

Gestora do Acordo de Cooperação Técnica entre o CNJ e a OIM, a juíza informou que serão implementadas outras ações para preparar o corpo funcional do Judiciário para tratamento adequado das vítimas nos processos relativos a tráfico de pessoas, inclusive com a participação da Escola Nacional de Formação de Magistrados (Enfam). “É fundamental, para o Judiciário, que a interação com as vítimas do tráfico de pessoas paute-se no atendimento humanizado, consoante as regras protetivas e de assistência social já inseridas em nosso ordenamento jurídico”, afirmou.

Ela ressaltou que, além dos treinamentos, a pactuação também alcança o lançamento da obra “Tráfico de Pessoas e Crimes Conexos”, produzida em conjunto pelo CNJ e pela OIM, compilando a legislação sobre o tema. Lívia Peres observou que a Lei nº 13.344/2016, que trata da prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, prevê como diretrizes ao enfrentamento deste ilícito a articulação interinstitucional e o incentivo à realização de estudos e pesquisas, medidas essas albergadas com celebração do acordo de cooperação técnica entre CNJ e OIM. “A formalização da cooperação com a OIM e as ações decorrentes demonstram a preocupação do CNJ em alinhar o Poder Judiciário ao regramento vigente”, explicou.

Segundo o chefe da missão da OIM no Brasil, Stéphane Rostiaux, a parceria com o CNJ abrange ainda o lançamento de uma campanha de comunicação temática, para sensibilizar a sociedade a respeito do crime e dos mecanismos de prevenção e repressão, além de um curso à distância para técnicos do sistema de justiça. “O treinamento abordará os principais conceitos da matéria com foco na perspectiva de proteção às vítimas e apresentará a rede de proteção que pode ser acionada quando os casos se apresentam para o julgador. O formato ‘à distância’ permitirá uma ampla difusão deste conteúdo. Com esse conjunto de ações, a OIM espera contribuir e apoiar o CNJ em desenvolver ações e políticas de justiça relacionadas ao enfretamento ao tráfico de pessoas”, afirmou Rostiaux.

Os alunos do curso foram indicados pelos tribunais que integram a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas. A proposta é que, após absorver os conhecimentos reunidos no Protocolo de Escuta Qualificada, os magistrados e servidores possam aprimorar a atuação do Judiciário no atendimento a vítimas de tráfico de pessoas, especialmente em meio a uma onda migratória de venezuelanos para o Brasil.

A chefe de gabinete da Secretaria Especial de Programas, Pesquisa e Gestão Estratégica do CNJ, Doris Canen, abriu a reunião informando estatísticas que comprovam as dificuldades de o Estado abordar a problemática do tráfico de pessoas. Os dados variam, de acordo com os registros dos diferentes órgãos públicos que atendem as vítimas dessa rede criminosa transnacional. Dados do Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas, publicado em 2021 pelo MJSP e pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), apontam que foram resgatadas 203 vítimas de tráfico de pessoas no Brasil, por meio de operações da Polícia Federal, entre 2018 e 2020. Seriam 615 vítimas, conforme dados do sistema de saúde, ou 1.811 casos, de acordo com os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS).

“A disparidade entre o quantitativo de pessoas resgatadas e de possíveis vítimas atendidas em serviços de saúde e de assistência social indica que há um longo caminho a ser trilhado na construção das capacidades do Poder Público para adequada prestação de seus serviços e de seu devido registro, em conformidade com a Constituição Federal”, afirmou. De acordo com a Base Nacional de Dados do Poder Judiciário (DataJud), entre 2015 e 2020, os tribunais de Justiça e a Justiça Federal identificaram 192 processos cadastrados no sistema eletrônico como relativos a um dos quatro assuntos: Tráfico Internacional de Pessoas, Tráfico Internacional para fins de exploração sexual, Tráfico Interno de pessoas e Tráfico Interno para fins de exploração sexual – considerando atos infracionais, cometidos contra adolescentes, e crimes do código penal, contra adultos.

Atualidade do problema

A gerente sênior de programas da OIM, Michelle Barron, afirmou que o tráfico de pessoas é um problema mundial que testemunhou quando atuava no Leste Europeu e no sudeste da Ásia. Recentemente, conviveu durante um ano e meio com o fluxo migratório de venezuelanos que entra no Brasil pela fronteira com o estado de Roraima, em estado de extrema vulnerabilidade. A representante da OIM relatou ter visto mães acompanhadas de três, até quatro filhos, e uma mochila nas costas apenas.

“Se é difícil para uma mãe solo brasileira entrar no mercado de trabalho, imagine para uma pessoa que não tem acesso a creche, não tem por perto sua mãe, uma irmã ou uma amiga com quem possa deixar o filho para trabalhar”, afirmou. Em contraste à gravidade da atual onda migratória, Barron afirmou que o Brasil dá um exemplo para o mundo “abrindo seus braços para os haitianos, venezuelanos e, recentemente, ao conceder vistos humanitários para refugiados do Afeganistão e da Ucrânia”, disse.

Segundo o diretor da missão da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) no Brasil, Ted Gehr, a entidade participa desde 2018 ao lado de uma série de organizações não-governamentais e com as Forças Armadas, por meio da Operação Acolhida, do esforço emergencial para receber centenas de venezuelanos que cruzam a fronteira para entrar no Brasil diariamente. “A situação é bem séria. Atualmente vemos uma média de 400 venezuelanos entrando por dia. É um número superior ao período antes da pandemia de Covid-19. As vítimas de tráfico de pessoas são muito vulneráveis. Protegê-las e defender seus direitos é muito importante”, disse.

Desafios

Os representantes da Justiça Estadual relataram as dificuldades que cada um enfrenta, nos diferentes estados. Enquanto os migrantes passam a ocupar lugares públicos em capitais do Norte, como Belém e Manaus, também foram levantadas questões administrativas dos órgãos de Justiça, como a falta de dados oficiais a respeito desse grupo populacional e das deficiências de pessoal para atender esse público. Para encaminhar as muitas demandas de pessoas em estado de vulnerabilidade, não apenas imigrantes, os tribunais precisam de profissionais de diversos ramos de atuação – psicologia, assistência social, pedagogia, entre outros. A capacitação dessas equipes é fundamental para evitar que a falta de recursos resulte na prostituição de crianças e adolescentes, trabalho análogo ao escravo, entre outras violações de direitos humanos.

A primeira ação de capacitação teve a participação dos Tribunais de Justiça de Roraima (TJRR), Santa Catarina (TJSC), Goiás (TJGO), Distrito Federal (TJDFT), Paraná (TJPR), Amapá (TJAP), Tocantins (TJTO), São Paulo (TJSP), Piauí (TJPI), Mato Grosso (TJMT), Rio Grande do Sul (TJRS), Acre (TJAC), Pará (TJPA) e Bahia (TJBA). Até o final do ano, será lançado um curso de educação a distância para técnicos do Poder Judiciário, ocorrerá uma segunda capacitação para juízes e juízas e será promovida uma campanha de informação sobre tráfico de pessoas.

Fórum do Judiciário

Na Justiça, o CNJ atua desde 2015 por meio do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet) para, entre outras ações, levantar dados relativos ao número, à tramitação, às sanções impostas e outras informações sobre inquéritos e ações judiciais referentes à exploração de pessoas em condições análogas à de trabalho escravo e do tráfico de pessoas. Uma das ações mais recentes foi a inclusão de assuntos específicos relacionados ao tráfico de pessoas nas Tabelas Processuais Unificadas (TPUs), utilizadas pela Justiça para identificar as demandas judiciais em curso no Brasil.

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