Capitão reencarna Major Curió, interventor da ditadura na Serra Pelada

Curió foi o último símbolo da ditadura militar, com poder de vida e morte sobre os miseráveis civis, lavradores do sul do Pará e do sudoeste do Maranhão, que largaram tudo e correram em busca do ouro

Ricardo Kotscho
Publicada em 03 de outubro de 2019 às 12:20
Capitão reencarna Major Curió, interventor da ditadura na Serra Pelada

Ricardo Kotscho, do Jornalistas pela Democracia, critica a fala de Jair Bolsonaro, para quem o "interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério". Vi ali reencarnado o major Sebastião Rodrigues de Moura, nomeado pelo general João Figueiredo, "para ser interventor plenipotenciário no maior garimpo a céu aberto do mundo", compara Kotscho

Em frente ao Palácio do Planalto, na marcha batida rumo ao atraso dos piores tempos da ditadura militar, o capitão-presidente subiu numa cadeira para falar a meia dúzia de garimpeiros de Serra Pelada que pediam a intervenção das Forças Armadas.

“O interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”, disparou Bolsonaro, que desde a sua chegada à Câmara, em 1991, defende a liberação de todas aquelas terras para a mineração.

Por um momento, na terça-feira, vi ali reencarnado o famigerado major Sebastião Rodrigues de Moura, agente do SNI, alcunhado de Curió, nomeado pelo general João Figueiredo, o último dos ditadores, para ser interventor plenipotenciário no maior garimpo a céu aberto do mundo.

Curió foi o último símbolo da ditadura militar, com poder de vida e morte sobre os miseráveis civis, lavradores do sul do Pará e do sudoeste do Maranhão, que largaram tudo e correram em busca do ouro “como nunca antes se viu” na terra prometida de Serra Pelada.

Esta história eu conheço desde o início, não é de ouvir falar, e posso dar o testemunho de quem acompanhou a saga de Serra Pelada _ do apogeu, quando havia 100 mil homens naqueles buracos, à decadência, dez anos depois, com os sobreviventes sofrendo uma epidemia de lepra e aids quando o ouro acabou.

Até escrevi um livro, em 1984, com a série de reportagens publicadas sobre o garimpo, editado em 1984, pela Editora Brasiliense: “Serra Pelada _ Uma Ferida Aberta na Selva”, que ainda está à venda na internet. Com fotos de Jorge Araújo, conto o dia a dia desta grande aventura humana que rendeu muito ouro, mais de 41 toneladas, e acabou em tragédia.,

No início de 1980, trabalhando na Folha, fui um dos primeiros repórteres a entrar no garimpo, junto com o fotógrafo Ubirajara Dettmar, num avião monomotor mambembe pilotado por um refugiado angolano, o único que encontrei em Marabá, a 150 km de distância, com coragem para descer naquela pista improvisada.

Foi a primeira vez que vi um avião buzinar na aterissagem porque havia muita gente andando na estreita fresta de terra vermelha aberta na mata.

Como ninguém saia da frente, o aviãozinho teve que arremeter e quase batemos no morro em frente.

Uma vez em terra firme, me deparei com o cenário mais assustador que já havia visto na vida _ milhares de homens arriscando a vida, subindo com pesados sacos de terra em escadas improvisadas, chamadas de “adeus, mamãe”. Até hoje, não se sabe quantos morreram ali.

Nos barrancos onde montaram suas cabanas de lona preta, onde também dormiam, eles peneiravam a terra em busca do cascalho de ouro.

Decretada como área de Segurança Nacional pelo governo militar, no garimpo de Serra Pelada, onde só se chegava a pé por trilhas de até 50 km abertas na mata, não podiam entrar mulheres, armas e bebidas.

Entre o céu prometido pelo ouro e o inferno da vida naquela cratera que abriu uma ferida na selva, uns poucos ficaram ricos, os “capitalistas” dos barrancos, como eram ali chamados, e a maioria, os “formigas”, voltou para seus lugares de origem tão miserável como chegou.

É esse o cenário que Bolsonaro agora quer espalhar por toda a Amazônia, com o liberou geral dos garimpos, como prometeu na campanha eleitoral, e está cumprindo.

Major Curió, acusado de muitos crimes, era um herói para os militares da época porque combateu a Guerrilha do Araguaia nos anos 70 do século passado.

Capitão Bolsonaro, esta triste figura, afastada do Exército aos 33 anos por insubordinação, só entrou em combate agora, contra a democracia, o Estado de Direito, o meio ambiente e as instituições.

“Vocês foram felizes no tempo do Figueiredo. A legislação era outra e eu tenho de cumprir a lei. Por isso que eu digo a vocês: se tiver amparo legal, eu boto as Forças Armadas lá”, prometeu o capitão-presidente, agora em 2019, quatro décadas após a descoberta da jazida no sudeste do Pará.

A única voz que se levantou contra esse desatino, foi a do bispo de Marajó, dom Evaristo Spengler, um dos organizadores do Sinodo da Amazônica, convocado pelo Papa Francisco, que começa no próximo domingo:

“Queremos pedir um não a projetos de mineração em territórios indígenas, não ao garimpo legal e ilegal na Amazônia, não à legalização de novos garimpos”.

Pode ser tarde demais.

Só este ano, desde a posse do capitão Bolsonaro, já foram registradas 160 invasões de terras indígenas, segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário).

Boa parte delas foram ocupadas por garimpos.

A seguir neste ritmo, em breve não haverá mais índios nem árvores para contar a história da Amazônia.

Bolsonaro e seus garimpeiros ficarão felizes.

Vida que segue.

Ricardo Kotscho é jornalista e integra o Jornalistas pela Democracia. Recebeu quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo e é autor de vários livros.

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