É preciso enterrar o neoliberalismo
"Nos Estados Unidos, Biden promove mudanças profundas, com medidas econômicas e sociais que implicarão expansão de US$ 5,4 trilhões nos gastos nesta década. No Brasil, a agenda econômica segue interditada pelo ideário austericida que aprofunda a crise e amplia as desigualdades", escrevem o ex-ministro Alozio Mercante e o sociólogo Marcelo Zero
A história não necessariamente precisa repetir-se como tragédia ou farsa. Em algumas circunstâncias, ela pode repetir-se como êxito. É o caso, por exemplo, dos pacotes de estímulos que Joe Biden pretende implantar nos Estados Unidos. Trata-se do mais ambicioso plano econômico desde o New Deal de Franklin Delano Roosevelt.
Com efeito, quando analisado em conjunto com uma série de medidas adicionais, verifica-se que o chamado Plano Biden é também um projeto de grande alcance, que se espraia por todas as áreas relevantes, tanto econômicas quanto sociais. No último dia 28, Biden anunciou o Families Plan, que aumenta os investimentos públicos na área social em US$1,8 trilhão.
Ele não tem a mesma profundidade do Green New Deal proposto por Bernie Sanders, mas, mesmo assim, representa avanço muito significativo. Tampouco trata do problema central do capitalismo: a financeirização perversa da economia real. Mas o que Biden propõe não é apenas uma pequena reforma. É, para os padrões extremamente conservadores dos EUA das últimas décadas, uma mudança de paradigma. Caso seja exitoso, o plano significará o abandono do neoliberalismo radical e hegemônico desde Ronald Reagan e da austeridade fiscal pró-cíclica.
Obviamente, o Plano Biden, assim como o New Deal de Roosevelt, visa socorrer o capitalismo norte-americano em crise. E, no primeiro caso, criar as condições para os EUA se reposicionarem na disputa geoestratégica marcada pela consistente e acelerada ascensão da China, que avança para ocupar o lugar de maior economia do planeta.
Da mesma forma, é preciso considerar que o plano se refere às políticas internas. Em política externa, a administração Biden permanece muito conservadora, mantendo a maioria dos objetivos da administração anterior, embora com métodos mais brandos do que os de Donald Trump.
Nesse sentido, Biden deverá manter a mesma atitude hostil contra Venezuela, Irã, China, Rússia e quaisquer outros países que sejam vistos como ameaças aos interesses norte-americanos. Seu principal objetivo geopolítico é o de tentar reafirmar a ameaçada hegemonia dos EUA, num cenário mundial crescentemente conflitivo e incerto.
Em relação especificamente ao Brasil é à América Latina, a diretriz de Biden será a de manter a região como zona de influência exclusiva dos EUA, em linha com a histórica Doutrina Monroe. Isso implicará fragilização do processo de integração regional soberano e o eventual novo uso do lawfare e outros mecanismos contra governos que não se alinhem aos interesses dos EUA na região. Isso, no entanto, não elimina os avanços sociais. Ao contrário, assim como no New Deal, há no Plano Biden, bem como em várias medidas adicionais previstas em seu governo, o reconhecimento explícito de que a crise não será superada e os EUA não poderão voltar a ser competitivos, se não reconstituírem sua classe média, distribuírem renda, eliminarem a pobreza, gerarem empregos decentes e sindicalizados, assegurarem direitos trabalhistas e investirem em serviços públicos e no Estado de Bem-Estar.
Por isso, a proposta de Biden visa explicitamente reverter a tendência de concentração de renda e patrimônio, erosão das classes médias, fragilização da classe trabalhadora, aumento da pobreza e de eliminação do Estado de Bem-Estar que se verifica nos EUA desde o final da década de 1970 do século 20.
O Plano Biden procura reabilitar a política fiscal e a emissão de dívida pública como essenciais para a recuperação e reconstrução imediata da economia americana. Distribui no tempo, por um prazo de oito anos, o endividamento e, com base nessa flexibilidade macroecômica, fundamenta os investimentos iniciais
Assim como o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, anunciado pelo PT em setembro do ano passado – e largamente ignorado pela mídia nacional –, o Plano Biden, que causa frisson na imprensa local, tem dimensão emergencial – a da reconstrução – e uma de médio e longo prazo – a da transformação.
Em primeiro lugar, há o chamado America Rescue Plan, mais concentrado na emergência, que já é lei e prevê investimentos de US$ 1,9 trilhão.
Embora o CARES Act de Donald Trump tenha sido até maior – US$ 2,2 trilhões –, ele reservou apenas US$ 500 bilhões para os cidadãos. O resto das despesas não comprometidas com gastos para a compra de vacinas foi quase todo para ajuda a empresas, inclusive as grandes corporações. Ademais, o CARES Act muito foi aperfeiçoado pelo Congresso, em negociações com os Democratas. Ao final do ano, Trump quis reduzir os cheques para apenas US$ 600, no que foi rechaçado pelo Democratas, que queriam cheques de US$ 2 mil.
Agora, boa parte do estímulo, cerca de 1 US$ trilhão, é para ajuda direta aos cidadãos. Além dos cheques de US$ 1.400 para os cidadãos – um super auxílio emergencial –, há a extensão do seguro-desemprego, o auxílio para pagamentos de aluguéis, o fortalecimento do sistema de distribuição de alimentos gratuitos, entre outras políticas sociais.
Além disso, há investimentos emergenciais para a produção e comercialização de vacinas, expansão da testagem sobre o coronavírus, contratação de 100 mil novos empregados no setor de saúde, gastos substanciais em educação para permitir a abertura das escolas, ajuda para que estados e cidades possam manter os serviços públicos, linhas facilitadas de crédito para pequenas e médias empresas, claramente colocando a geração de emprego e renda no centro da política econômica.
Os investimentos são de tal ordem, que a maioria dos bancos e das agências de risco projeta um crescimento da economia norte-americana entre 7% e 8,5% já para este ano.
Mas há, ainda, uma segunda parte do plano, mais focada no médio e longo prazo, que visa transformar profundamente os cenários da economia e da sociedade norte-americanas. Trata-se do Build Back Better ou America Jobs Plan, que prevê investimentos da ordem de US$ 2,3 trilhões em infraestrutura, educação, seguridade social, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente e energia limpa. Esses investimentos estatais aportariam um crescimento médio anual do Produto Interno Bruto (PIB) de 4,2% entre 2022 e 2024 e de 2,9% entre 2024 e 2030.
Com tais investimentos seriam gerados 18,6 milhões de empregos “decentes e sindicalizados”. E, já em 2022, a taxa de desemprego pode vir a ficar em cerca de 4%.
Esse grande programa contracíclico e “desenvolvimentista” não se limita a reformar a infraestrutura já existente. Boa parte desses investimentos serão destinados a áreas “portadoras de futuro”. Por isso, estão previstos grandes investimentos na transição ambiental e energia limpa, novos sistemas de transporte, banda larga e inclusão digital, novas tecnologias de comunicação e informática, educação, ciência, tecnologia e inovação de um modo geral. Há o sólido fomento para a destruição criadora, no impulso da economia ambientalmente sustentável de baixo carbono.
Com o intuito de fortalecer essas áreas, serão investidas grandes somas, no valor de US$ 400 bilhões, em compras governamentais direcionadas. Tudo isso já foi divulgado.
Mas são os investimentos na área social que mais chamam a atenção. Em educação, o Plano Biden promete, em primeiro lugar, perdoar a dívida estudantil, a segunda maior dívida das famílias dos EUA, atrás apenas das hipotecas. Será um alívio financeiro imenso para estudantes e suas famílias. Hoje, muitos estudantes acabam desistindo de fazer ou completar cursos universitários para não terem de se endividar pelo resto da vida.
Não bastasse, Biden promete ensino público e gratuito nas universidades para aqueles estudantes que venham de famílias que tenham renda de até US$ 125 mil por ano.
A combinação do perdão e limitação dos pagamentos das dívidas estudantis com cursos universitários gratuitos representa um poderoso estímulo para a educação superior, a competitividade geral da economia, o desenvolvimento científico-tecnológico e a diminuição das desigualdades sociais e raciais. Esta é uma dimensão essencial para impulsionar a economia do conhecimento e promover a inclusão social.
Na área da saúde, Biden vai expandir o Medicare, programa de atendimento gratuito à saúde, criado por Obama para idosos (mais de 65 anos) e famílias pobres. Biden quer que todos os americanos com mais de 60 anos façam parte do programa. Ademais, o democrata quer expandir também o Medicaid, programa de planos de saúde a preços módicos para 97% dos não atendidos pelo Medicare.
Não seria ainda um sistema público universal, mas trata-se de um sistema híbrido que poderia levar grande alívio, inclusive financeiro, às famílias norte-americanas. Afinal, nos EUA muitas hipotecas são feitas para poder pagar caríssimos tratamentos de saúde. Há uma nova dimensão para o fomento da economia de cuidados, educação, saúde e segurança pública.
Biden também investirá na indústria de genéricos, numa regulação mais estrita dos planos privados de saúde e no controle do abuso dos preços de medicamentos e procedimentos.
Em medida adicional ao plano, Biden pretende dobrar o salário-mínimo dos EUA, que passaria de pouco mais de US$ 7 por hora para US$ 15 por hora trabalhada. Dessa forma, cerca de 40 milhões de trabalhadores norte-americanos poderão vir a dobrar a sua renda.
A Casa Branca também tem pronto o projeto de lei do Protecting the Right to Organize (PRO) Act, que busca facilitar a organização dos trabalhadores e expandir a sindicalização. Hoje, os EUA tem níveis muito baixos de trabalhado ressindicalizados: cerca de 7% da força de trabalho.
A criação de empregos decentes, de boa remuneração e sindicalizados (union jobs) está no cerne da estratégia de Biden para reconstituir a classe média dos EUA e constituir novamente uma classe trabalhadora afluente e com bom poder de barganha.
Nesse campo, há várias outras medidas que expandem direitos trabalhistas. Assim, há o Paycheck Fairness Act para garantir que as mulheres sejam pagas igualmente por trabalho igual e projetos que asseguram o pagamento por dias de ausência por doença e 12 semanas de licença familiar e médica remunerada.
Uma das mudanças importantes são as sinalizações na política monetária, onde constata que nos últimos 10 anos a inflação estiveram abaixo da meta de 2%, e agora poderão tolerar patamares de até 2,5% para conter a taxa de juros e estimular o crescimento e a geração de empregos.
O plano também reabilita a política industrial como parte essencial da estratégia de relançamento da economia dos EUA.
O pacote de Biden e esse outro grande leque de medidas econômicas e sociais implicarão expansão de US$ 5,4 trilhões de gastos federais nesta década. Para financiar essa expansão, Biden apresentou um novo código tributário mais progressivo para contribuintes individuais e um aumento na alíquota de imposto corporativo de 21% para 28%. Mas a reposição da taxação das empresas aos níveis anteriores é apenas uma parte da arrecadação necessária para financiar os investimentos previstos.
A lista de propostas de aumento de impostos para os ricos inclui também, entre outras medidas: 1) aumentar da alíquota máxima de imposto de renda de 37% para 39,6%; 2) tributar integralmente ganhos de capital e dividendos para aqueles com renda anual acima de US$ 1 milhão; 3) aplicar um imposto sobre a folha de pagamento da Previdência Social para aqueles que ganham mais de US$ 400 mil por ano.
Ele também propõe a cobrança de uma “sobretaxa de offshoring” de 10% sobre a receita da produção de bens ou serviços produzidos no exterior, mas vendidos nos EUA por empresas americanas.
Contudo, o mais importante não é isso. No campo tributário, a proposta mais relevante de Biden é a criação de um imposto internacional mínimo de 21% sobre os lucros de empresas multinacionais. O objetivo é impedir que as empresas transfiram sua produção ou sede legal para países que têm legislação fiscal frouxa. Dessa maneira, Biden, quer instituir um combate global e concatenado à evasão fiscal, à “maquiagem fiscal” e aos chamados “paraísos financeiros”.
A proposta, em discussão no G20, permitiria arrecadação anual de US$ 640 bilhões, e ensejaria a recuperação de um grande volume de ativos desviados e sonegados.
Todas essas medidas, além de outras ainda em estudo, apontam, para uma revisão completa do chamado “modelo neoliberal” impulsionado pelo “Consenso de Washington”, com seu Estado mínimo e as políticas pró-cíclicas a ele associadas. Isso para dizer o mínimo. Se Biden terá êxito na empreitada, é outra discussão. Resistências e recuos seguramente farão parte deste esforço abrangente de mudança de rota.
Na realidade, Biden e os Democratas estão apenas se somando a uma crescente opinião majoritária, até mesmo entre parcela dos conservadores, segundo a qual o modelo neoliberal e suas políticas tornaram-se disfuncionais às economias e sociedades.
A gravidade da crise desencadeada pela pandemia e a ascensão da China, que já voltou a crescer 18,3% neste último trimestre, aceleraram essa reversão de expectativas.
Há, entretanto, aqueles que acham que o capitalismo, em sua fase atual de acumulação, é intrínseca e inexoravelmente neoliberal.
Porém, a análise histórica do capitalismo demonstra, ao contrário, que esse sistema tem bastante flexibilidade e capacidade adaptativa. O New Deal de Roosevelt é prova disso. Afinal, as “leis econômicas” não são naturais. Elas são politicamente disputadas e historicamente construídas.
Independentemente do debate de fundo, o fato, cada vez mais evidente, é que o neoliberalismo se esgotou. Ou o capitalismo enterra o falido modelo neoliberal ou esse modelo enterrará politicamente o capitalismo como opção minimante viável para assegurar a sobrevivência da natureza, da humanidade e das democracias.
Hoje, temos economias e sociedades em profunda crise. E modelos carcomidos e adoecidos. A solução – a vacina – é a volta da ação substancial do Estado, com políticas econômicas e sociais robustas e transformadoras. O tratamento é o enterro do neoliberalismo.
John Mayard Keynes dizia: homens práticos, que se consideram isentos de quaisquer influências intelectuais, frequentemente são escravos de algum economista defunto. Nada demais. Há ótimos economistas defuntos, como o próprio Keynes.
No Brasil, entretanto, os homens que estão no poder continuam a ser escravos de ideias mortas e modelos falidos amplamente questionados lá fora. Ideias que tiveram seu auge nos 1980 e 1990 do século 20, mas que hoje não inspiram mais ninguém com bom senso e contato com a realidade. Aqui, sequer se admite a revisão temporária do modelo neoliberal e de suas políticas austericidas, na conjuntura de crise profunda, socialmente dramática e insustentável que o país vive.
Por tal razão, enquanto o Plano de Biden, que revisa conjuntural e estruturalmente o paradigma neoliberal, é saudado aqui como algo progressista e “desenvolvimentista”, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil apresentado pelo PT, que propõe, mutatis mutandis, algo semelhante e apresentado com antecedência, sequer entra no debate. Os grandes interesses do sistema financeiro envolvem os principais veículos da mídia brasileira altamente concentrada e oligopolizada.
No Brasil, não faltam apenas as vacinas médicas para salvar vidas. Falta mais democracia, pluralidade no debate e discussão aprofundada sobre alternativas. Estas sim são as vacinas políticas capazes de enterrar o neoliberalismo e salvar o país.
* ALOIZIO MERCADANTE - Economista, é presidente da Fundação Perseu Abramo e ex-ministro de Estado nos governos Dilma Rousseff (2011- 2016)
MARCELO ZERO - Sociólogo, é especialista em Relações Internacionais e assessor na Liderança do PT no Senado
Aloizio Mercadante é economista, professor licenciado da PUC-SP e Unicamp, foi Deputado Federal e Senador pelo PT (SP), Ministro Chefe da Casa Civil, Ministro da Educação e Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação
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