EaD está concentrado em dez grupos privados, com cursos de baixa qualidade e altas taxas de evasão
É o que mostra o relatório Expansão da Educação Superior no Brasil, elaborado pelo Centro de Estudos Sou Ciência com base em uma série histórica de 20 anos
A explosão dos cursos a distância no país, que foi revelada no último dia 10 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), com a divulgação dos dados do Censo do Ensino Superior de 2022, nem de longe é o problema mais grave. A maior parte desses cursos tem propostas pedagógicas frágeis, baixas notas no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) e altos índices de evasão. Por trás deles, estão dez grandes grupos privados – Ânima, Cruzeiro do Sul, Estácio, Kroton, Leonardo da Vinci, Ser Educacional, Unicesumar, Uninove, Uninter e Unip – que concentram a maior parte das matrículas e usam a modalidade EaD como instrumento de obtenção de lucro em detrimento da qualidade de ensino.
É o que mostra o relatório “Expansão da Educação Superior no Brasil: análise das Instituições Privadas”, elaborado pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (Sou Ciência), vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores do Sou Ciência analisaram dados de 2000 a 2020, mapearam as mantenedoras com fins lucrativos, identificaram os dez maiores grupos empresariais e fizeram análises estatísticas comparativas sobre as condições de funcionamento das instituições, suas matrículas, o desempenho e a trajetórias dos seus estudantes.
“Os dados que analisamos não deixam dúvidas de que já havia um processo avançado de mercantilização e cartelização do ensino superior, estimulado pela desregulação do setor e movido por interesses de mercado alheios aos propósitos de formação. E esse cenário certamente não mudou, tendo em vista o aumento do número de estudantes na modalidade EaD, que acaba de ser divulgado, e à ausência de medidas regulatórias que pudessem reverter esse processo”, afirma o coordenador do estudo, Carlos Bielschowsky, professor do Instituto de Química da UFRJ, que se dedica a projetos públicos educacionais há mais de 20 anos.
Fio da meada da precarização – A formação precária foi trazida à tona quando os pesquisadores descobriram que em 2020 quase metade dos estudantes dos dez grandes grupos estava matriculada em cursos de baixa qualidade de ensino. Naquele ano, de um total de 8,680 milhões de matrículas na graduação, os dez grandes grupos educacionais detinham 46,7% delas: 4,050 milhões. Destes, 47% dos estudantes – 1,905 milhão – estavam em cursos com conceitos 1 ou 2 (insuficiente) no Enade, sendo que os percentuais de estudantes com esses mesmos conceitos nas demais instituições privadas e nas públicas eram de 37% e 15,3%, respectivamente. (A prova do Enade, cuja escala vai de 1 a 5, avalia os cursos de graduação em relação ao que os formandos devem saber para exercer sua profissão. O ciclo do Enade analisado foi o de 2017, 2018 e 2019.)
A justificativa de que esse desempenho se deve ao baixo perfil socioeconômico dos estudantes dos grandes grupos não cola. Os pesquisadores do Sou Ciência não encontraram diferenças significativas de renda em relação aos universitários das demais instituições. Nas instituições públicas, há um percentual ligeiramente maior de estudantes com renda familiar menor do que 1,5 salário-mínimo; um percentual ligeiramente menor de estudantes com renda familiar com 1,5 a 10 salários-mínimos; e um percentual ligeiramente maior para 10 salários-mínimos ou mais. A maior parte possui renda familiar de até 3 salários-mínimos, sendo 54,6% dos matriculados nas públicas estaduais, 52,9% nas privadas (exceto confessionais), 47,8% públicas federais e 40,7% nas confessionais.
Alta evasão e pouca diplomação – Os pesquisadores do Sou Ciência descobriram que mais da metade dos estudantes desses grandes grupos abandonava o curso ao término do primeiro ou segundo ano da graduação. Do total de ingressantes nos grandes grupos privados em 2018, apenas 42% se mantinham ativos em 2019, ou seja, uma evasão de 58% ainda no primeiro ano do curso. Nas instituições públicas, o percentual de alunos ativos era de 71% para o mesmo período.
Outra projeção, feita para os ingressantes em 2016, mostra que somente 27% dos estudantes dos grandes grupos conseguiu se diplomar – índice bem inferior comparado aos 43% das demais instituições privadas e aos 47% das públicas. Os pesquisadores observaram ainda que as taxas de diplomação para os ingressantes em 2011 eram praticamente iguais às de 2016 para as instituições públicas e demais privadas. Já nos grandes grupos, essa taxa que era de 37,1% caiu para 27% naquele período de cinco anos.
Concentração proposital no EaD – Os pesquisadores do Sou_Ciência descobriram que o baixo desempenho no Enade e a alta taxa de evasão estava associada à explosão do ensino a distância nas instituições privadas, principalmente nesses grandes grupos privados. Entre 2001 e 2020, as matrículas em EaD no setor privado deixaram de ser residuais e passaram a representar perto de 45% do ensino superior como um todo. Em 2020, no total do país, foram registradas 3,105 milhões de matrículas em EaD, com 2,008 milhões de ingressantes. Destes, 80% (2,485 milhões) das matrículas e 83,3% (1,672 milhões) dos ingressos estavam concentrados nos grandes grupos. Naquele ano, eles receberam 654 mil ingressantes em cursos presenciais e 1,672 milhão em cursos à distância.
Além da concentração nos cursos EaD, houve um movimento de transferência de alunos da modalidade presencial para o EaD nesses grupos. Em 2020, de um total de 4.050.858 matrículas (presencial e EaD) nesses grupos, 61,4% eram EaD. Já os ingressantes eram 71,9% na modalidade à distância.
Lucro como principal objetivo – Segundo o relatório, trata-se de um modelo de negócio baseado na captação de um número cada vez maior de ingressantes para a obtenção de lucro elevado nos primeiros anos da graduação. Situação similar à que ocorreu nos Estados Unidos em 2012, quando o Senado daquele país denunciou alta captação de novos estudantes, com amplo investimento em propaganda, e baixíssimo investimento em permanência.
Para os pesquisadores do Sou Ciência, não há dúvidas de que os grandes grupos se caracterizam mais como instituições financeiras do que educacionais. “No geral, oferecem cursos com qualidade ruim, baratos e de baixo custo de manutenção, o que permite maior quantidade de matrículas e maior retorno financeiro”, afirma Bielschowsky.
Isso é demonstrado claramente pelo reduzido investimento na qualificação do corpo docente nesses grupos. Ao analisarem dados do Censo da Educação Superior de 2020 e da CAPES em 2022, os pesquisadores constataram que as universidades públicas federais (73,6%) e estaduais (63,0%) detinham mais que o dobro de docentes com doutorado em relação às universidades particulares (32,5%), centros universitários particulares (27,4%) e faculdades particulares (27,4%). Exceção das instituições confessionais (47,8%).
Além da qualificação inferior, nas universidades e centros universitários particulares (geralmente dos grandes grupos), há uma sobrecarga na relação numérica aluno/professor: em 2020, uma média de 91 estudantes por professor. Nas demais instituições privadas eram 36 por 1. Nas confessionais, 34/1; nas públicas municipais, 22; nas públicas estaduais, 16; e nas federais, 11.
Expansão do EaD com brecha regulatória – No ensino privado, exceto as confessionais, há pouco investimento na pós-graduação. Em 2020, dos 4.530 programas existentes no país, 530 deles (11,7%) eram oferecidos por instituições privadas. Apenas 0,8% de seus estudantes estavam em cursos de mestrado ou doutorado, e somente 11,3% de seus docentes participavam de programas de pós-graduação stricto sensu. A pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico do país realizados em nível de pós-graduação continuavam concentrados no setor público (81,5% dos estudantes e 83,7% dos docentes).
E o que isso tem a ver com a expansão do ensino EaD na graduação? “Aparentemente, uma parte expressiva desses programas serve apenas para que as instituições ofertantes possam se enquadrar na categoria de universidade ou centro universitário, e dessa forma não precisarem de permissão do MEC para abrir novos cursos de graduação”, afirma a professora Maria Angélica Pedra Minhoto, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp, uma das responsáveis pela coordenação das pesquisas realizadas pelo Sou Ciência.
“É urgente que se estabeleça um rigoroso processo de regulação dessas instituições, em especial dos cursos EaD, além de endurecer as normas que permitem a uma instituição ser considerada como universidade ou centro universitário”, reforça a coordenadora geral do Sou Ciência, Soraya Smaili, professora da Escola Paulista de Medicina da Unifesp.
“A modalidade EaD é importante para a democratização do acesso ao ensino superior e há inúmeros casos bem-sucedidos que comprovam isso. No entanto, o que está ocorrendo é o inverso, dado o baixo desempenho no Enade e a evasão maior entre os universitários dos grandes grupos. É preciso estancar este processo de deterioração do ensino superior”, finaliza.
Sobre o relatório: O relatório “Expansão da Educação Superior no Brasil: análise das Instituições Privadas” é baseado em informações do Censo da Educação Superior, do Exame Nacional do Desempenho do Estudante (Enade) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O estudo abrange o período de 2000 a 2020 e teve o envolvimento de dez pesquisadores, apoiados por um corpo técnico e de dados.
Foram realizadas análises estatísticas comparativas entre os diversos tipos de instituições (privadas com e sem fins lucrativos; confessionais; comunitárias; públicas municipais, estaduais e federais; parte de redes ou grupos com e sem fins lucrativos), sobre as características dos cursos (áreas de conhecimento e desempenho em avaliações nacionais, e modalidades oferecidas – presencial ou EaD); o fluxo dos estudantes (taxas de matrícula, evasão e conclusão de cursos, além do desempenho no Enade); e comparações gerais da oferta de curso pelo ensino público e privado, no Brasil e em outros países. Também foi feita uma revisão bibliográfica dos estudos sobre as políticas públicas adotadas pelo Brasil.
A íntegra do documento está disponível neste link. Abaixo, alguns gráficos mostrados no relatório.
Nove em cada dez estudantes confiam em seus professores e 87% os enxergam como exemplos positivos
O estudo também mostra que os docentes têm boa proximidade com os estudantes, pois 81% dos alunos contam que não possuem problemas na relação com seus professores, enquanto que apenas 19% discordam dessa afirmação
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