Em 1967, FGTS substituiu estabilidade no emprego
O FGTS foi concebido em 1966 pelo ministro do Planejamento do governo do marechal Castello Branco, Roberto Campos. O objetivo era duplo: facilitar a demissão de trabalhadores e financiar a construção de imóveis.
Nos 21 anos da ditadura iniciada em 1964, uma série de siglas passou a fazer parte do cotidiano do brasileiro: Mobral, Arena, MDB, SNI, INPS e muitas outras. Uma delas, que completa 50 anos em 2017, continua a influenciar a vida de milhões de trabalhadores: FGTS.
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço entrou em vigor em 1º de janeiro de 1967 e tem sido um dos principais temas do noticiário nos últimos meses devido à decisão do governo de liberar o saque das contas inativas (sem depósitos há mais de três anos).
O FGTS foi concebido em 1966 pelo ministro do Planejamento do governo do marechal Castello Branco, Roberto Campos. O objetivo era duplo: facilitar a demissão de trabalhadores e financiar a construção de imóveis.
Para criar o fundo, foi necessário tornar letra morta dois artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): o que previa ao funcionário indenização de um mês de salário por ano trabalhado, em caso de demissão imotivada, e o que assegurava estabilidade no emprego ao trabalhador do setor privado que completasse dez anos na mesma empresa.
Escolha ilusória
Os dois direitos trabalhistas foram substituídos pelo FGTS. As empresas passaram a depositar 8% do salário dos funcionários numa conta individual. Em caso de demissão imotivada, o trabalhador poderia resgatar o dinheiro. Também seria possível fazer o saque para comprar a casa própria, por meio do Banco Nacional da Habitação. O BNH tornou-se o gestor do saldo acumulado de milhões de contas, usado no financiamento da construção de imóveis.
A proposta de criação do FGTS (Projeto de Lei 10/1966), enviada pela Presidência ao Congresso, previa que os novos contratados poderiam optar entre a estabilidade e o Fundo de Garantia. Na prática, porém, as empresas só aceitaram contratar os que abriram mão da estabilidade.
— Essa escolha será ilusória — argumentou o deputado Franco Montoro (MDB-SP) em agosto de 1966, numa sessão que discutiu o projeto. — A empresa escolherá aqueles que adotarem o sistema desejado pela empresa. A livre escolha não é do empregado, mas sim da empresa.
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Para convencer a opinião pública de que trocar a estabilidade pelo FGTS era uma boa ideia, o governo usou vários argumentos. Campos alegava que o fundo daria “estabilidade real” ao trabalhador, uma vez que poucos atingiam dez anos na mesma empresa — muitos eram demitidos justamente para não alcançar o direito. Calculava-se que menos de 20% dos empregados eram estáveis.
Um anúncio da ditadura publicado nos jornais tratava a estabilidade como problema e o FGTS como solução: “Não há mais o fantasma da estabilidade, que aparentemente beneficiava [o trabalhador], mas que na maioria dos casos era o responsável pelo corte de muitas carreiras de futuro logo no começo”.
Apesar dos poderes de ditador, Castello não conseguiu aprovar o FGTS no Congresso. Em 1966, dois anos após o golpe, a ditadura ainda tentava manter uma aparência de democracia. Mesmo manietado por cassações e por dois atos institucionais que lhe suprimiram poderes, o Congresso não se curvou a Castello. Muitos deputados e senadores temiam desagradar aos eleitores se votassem pelo fim da estabilidade, um dos pilares da CLT.
Os parlamentares do MDB, partido da “oposição consentida”, fizeram obstrução — contando com o apoio velado de parlamentares da Arena, o partido governista — até que o Parlamento entrasse em recesso.
Na sessão de 24 de agosto de 1966, que se estendeu até as primeiras horas da manhã seguinte, o senador Aurélio Viana (MDB-Guanabara), foi à tribuna atacar o projeto. Para ele, o ministro Roberto Campos queria agradar ao capital internacional, que exigia, segundo ele, o fim da estabilidade como condição para investir no Brasil:
— É público e notório que o senhor ministro do Planejamento vem defendendo essa tese que interessa aos grupos estrangeiros no sentido de extinguir o cerne da legislação social do Brasil, que é o instituto da estabilidade — disse ele, de acordo com documentos históricos guardados no Arquivo do Senado.
AI-2
Para Montoro, ao acabar com a estabilidade, o Brasil violaria um acordo internacional firmado em 1948 na Conferência Interamericana de Bogotá, por meio do qual os países do continente se comprometeram a “assegurar a permanência do assalariado no emprego, afastando o risco da despedida sem justa causa”.
— Se a estabilidade tem defeitos, e nós os reconhecemos, devem ser corrigidos, mas não ser eliminada a estabilidade — argumentou.
No dia seguinte, o senador Josafá Marinho (MDB-BA) tachou o projeto de “injurídico, inconstitucional e ilegal” e anunciou que tentaria invalidá-lo no Supremo Tribunal Federal. Para ele, era ilegal propor ao trabalhador a opção de abrir mão de direito:
— Não pode a lei ordinária, hierarquicamente subordinada à Constituição, permitir simples opção, pois esta anula o caráter de obrigatoriedade das garantias, importando, na prática, em supressão de uma delas.
O presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade (Arena-SP), abriu a votação: 100 deputados votaram sim, 40 votaram não e 2 se abstiveram. A votação, porém, não valeu, pois era necessária a presença de ao menos 203 deputados. Os senadores nem chegaram a votar.
Para aprovar o FGTS, Castello se valeu do Ato Institucional 2 (AI-2), de 1965, que previa a promulgação automática de projetos da Presidência que não fossem votados em 30 dias. O FGTS tornou-se a Lei 5.107, promulgada em 13 de setembro de 1966. Em 1970, estimava-se que 70% dos trabalhadores haviam aderido ao fundo.
Desde 1967, FGTS financiou construção de 11,5 milhões de imóveis no país
A criação do FGTS teve consequências positivas e negativas. O saldo, hoje superior a R$ 400 bilhões, tornou-se de fato importante no financiamento da construção imobiliária. A Caixa estima que, nestes 50 anos, o fundo tenha custeado 11,5 milhões de imóveis.
O dinheiro do FGTS, porém, nem sempre foi bem usado. Desvios de recursos pipocaram no noticiário nos anos 80 e 90. Conjuntos habitacionais foram erguidos a valores superfaturados ou nunca foram terminados. Estados e prefeituras recorreram ao fundo para custear saneamento, infraestrutura e habitação e jamais pagaram a conta. O BNH foi extinto em 1986 e a gestão do FGTS passou para a Caixa.
O trabalhador sempre teve dificuldade para fiscalizar se a empresa estava de fato depositando os 8%. Só em 1989 o extrato mensal da conta se tornou obrigatório.
O saldo do FGTS foi cobiçado para diversos usos, em geral como forma de estimular a economia. Em 1993, o saldo das contas inativas foi liberado — ação similar à adotada neste ano pelo governo. Em 1997, para estimular um programa de privatizações, foi permitido o uso de 50% do saldo das contas em ações da Vale e da Petrobras.
A Constituição de 1988 assegurou o FGTS ao trabalhador rural. Em 2015, o trabalhador doméstico ganhou de vez esse direito.
Projetos de lei no Senado buscam mudar regras do FGTS
Com 50 anos de existência, o FGTS é objeto de uma série de projetos de lei no Congresso. Boa parte deles cria novas situações que permitem o saque. O PLS 392/2016, de Rose de Freitas (PMDB-ES), autoriza o resgate em caso de pedido de demissão (hoje só a demissão sem justa causa dá o direito). O PLS 322/2016, de Eduardo Amorim (PSDB-SE), libera a retirada para pagar empréstimo consignado, curso superior e cirurgia.
Paulo Paim (PT-RS) é responsável por 22 propostas envolvendo o FGTS. Para ele, um dos problemas da lei é a atualização monetária, que perde para a inflação.
— O FGTS é uma poupança do trabalhador, então é inadmissível que não renda nem sequer a poupança. Chegava a render 3% ao ano. É uma piada — critica.
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