Fel, futebol e política
"Aí o futebol se mistura com a política, de novo: a Conmebol, que estuprou as normas sanitárias para trazer a Cova América para cá com o beneplácito cúmplice de Bolsonaro tinha um plano para a competição e o executou até o fim. O plano era dar a conquista à Argentina, caso ela chegasse à final por seus méritos. O Brasil, que em razão de Bolsonaro passou a ser um incômodo zero à esquerda nos organismos internacionais, também se converteu num zero à esquerda na FIFA e na Conmebol", escreve o jornalista
Estava no Estádio Nacional Mané Garrincha, em 2013, na abertura da Copa das Confederações, quando irrompeu uma vaia prevista à presidente Dilma Rousseff e ao presidente da FIFA, Joseph Blatter. As tais “Jornadas de 2013” já estavam nas ruas e o jogo Brasil x Japão, que abria a competição, quase é retardado em razão dos protestos. Era o evento-teste um ano antes da Copa do Mundo.
Também estava na Arena Itaquera, em São Paulo, na abertura da Copa de 2014 quando uma horda de grotescos imbecis respondeu ao coro “Dilma, vai tomar no cu!”, amplificando-o. A grosseria, transmitida para dois bilhões de telespectadores em todo o mundo, plateia planetária da partida Brasil x Croácia, foi puxada a partir do camarote “VIP” em que estavam o então senador Aécio Neves (PSDB), o presidente da Fiesp, Paulo Skaf e o apresentador de TV Luciano Huck.
Durante a competição que perderíamos por 7 a 1 na semifinal, gastei tempo e paciência contestando argumentos boçais de brasileiros que diziam torcer pela derrota da Seleção porque Dilma havia comprado a Copa para se reeleger em outubro. Havia uma divisão Panzer, alemã, no meio do caminho. Fomos atropelados – e Dilma se reelegeu. Ou seja, nada tinha uma coisa a ver com a outra, pero las teorias de conspiraciones, las hay. Os boçais engoliram as próprias mentiras, choraram a humilhação, enrolaram-se na camisa da CBF e passaram a exibi-la sem vergonha alguma no desfile de estupidez e de pouco apreço à Democracia, ao Estado de Direito, à Constituição e às regras da civilidade iniciado em 2015, consumado com o impeachment sem crime de responsabilidade em 2016 e catalisador da onda de burrice que deu ao País a tragédia chamada Jair Bolsonaro.
A Copa América de 2020 não podia ter ocorrido nem no ano passado, nem agora, em 2021, por uma razão simples: o subcontinente América do Sul é uma das regiões do mundo mais atrasadas na vacinação contra a Covid-19 e o Brasil, um dos países com maior proporção de mortos e infectados como o coronavírus por grupos de 100 mil habitantes. Colômbia e Argentina abriram mão de organizar o evento, que deveriam sediar, porque não tinham estrutura sanitária para fazê-lo com segurança. O governo brasileiro se ofereceu para receber a competição à qual nunca demos importância esportiva alguma. Jair Bolsonaro aceitou o apelo da CBF, sob o comando do assediador alcoólatra Rogério Caboclo, presidente da entidade, fazendo ouvidos moucos às regras da vigilância sanitária e do Ministério da Saúde.
Logo apelidada de Cova América, ou Copa da Covid, a competição dividiu o País. O índice técnico dos jogos foi muito aquém da Eurocopa, que ocorria em paralelos em estádios europeus irresponsavelmente abertos ao público. Irresponsavelmente, sim, pois neste momento se debate na Europa o repique do número de casos e de mortes em razão das partidas com público, das fan fests e das celebrações em bares e pubs. A lusitana girou e chegamos à final de ontem, reunindo os dois melhores times do trio de ferro da América do Sul – Brasil x Argentina, com Uruguai tendo sido despachado nas quartas-de-final.
Mais uma vez divididos pelo futebol, houve brasileiros a torcer pelos argentinos. Não acho nem ruim, nem difícil, nem indesculpável que isso ocorra. Como sempre digo quando instado a fazê-lo, torço pelo futebol. Não era assim. Tornei-me isso – e a Seleção não tem nada a ver com isso. Do ponto de vista futebolístico, não há traições – há paixão. Ao contrário da paixão entre duas criaturas humanas, que é eterna enquanto dure, posto que chama, como perpetuou Vinicius de Moraes, a paixão pelo futebol é eterna. Ponto. Ela morre quando seu clube formador morre – e o meu, Santa Cruz, do Recife, morreu – e há recidivas constantes da visita da sensação da paixão quando a gente vê o futebol sendo jogado com alma e inspiração. Ponto.
Ontem à noite não havia inspiração em nenhum dos lados. Mas havia alma, e ela estava envolta no manto alviceleste dos argentinos. Regressemos a um ponto essenl: Copa América nunca significou nada para a Seleção Brasileira. Caso significasse, sendo os únicos pentacampeões do mundo, não teríamos seis conquistas subcontinentais a menos que os argentinos e os uruguaios, que têm 15 cada um dos times.
Como torcer por uma equipe sem laterais?
O Brasil que já deu ao futebol mundial Nilton Santos, Zagalo, Carlos Alberto, Leandro, Cafu, Roberto Carlos, Marcelo e Daniel Alves, entre outros – mas, sobretudo, Nilton Santos, que “inventou” a posição mostrando ser possível a um atleta perfeito com ele era subir ao ataque, descer à defesa, apoiar a marcação e das assistências para os goleadores – jogou a Copa América com arremedos de laterais. Um deles, Renan Lodi, falhou claramente no gol de Di Maria e em mais dois lances. E não construiu nada à frente. Danilo foi o pior jogador em campo, em minha opinião. Roberto Firmino e Everton Cebolinha não têm mais condições de integrar o grupo. Aliás, a derrota será didática para o time do Brasil se Tite ficar no posto em que está e assumir que o Brasil não tem grupo. Gerson e Scarpa está gritando para entrar na Seleção, e merecem. Gabriel Jesus teria, possivelmente, escrito outra história ontem, caso estivesse em campo.
Aí o futebol se mistura com a política, de novo: a Conmebol, que estuprou as normas sanitárias para trazer a Cova América para cá com o beneplácito cúmplice de Bolsonaro tinha um plano para a competição e o executou até o fim. O plano era dar a conquista à Argentina, caso ela chegasse à final por seus méritos. O Brasil, que em razão de Bolsonaro passou a ser um incômodo zero à esquerda nos organismos internacionais, também se converteu num zero à esquerda na FIFA e na Conmebol.
Escolheram a dedo um árbitro uruguaio permissivo à violência em campo para apitar a partida. Não tenho dúvidas de que ele foi “centralizado” nos vestiários. O cartão em Fred (outra inutilidade em campo) aos dois minutos de jogo foi injusto e comprometeu o desempenho do volante. Neymar apanhou como quem sabe porque sofre daquele jeito, e quem batia já o fazia por vício. A generosidade mecânica com que os amarelos eram apresentados aos brasileiros, e a escassez de punições aos argentinos davam indícios de jogo comprado. O apito final aos 49min56seg, antes mesmo de completados os cinco minutos de acréscimo – que deveriam ter sido sete – e quando a Seleção armava um derradeiro ataque que podia ter se revelado promissor, não deixou dúvidas: foi armação.
Mas, reclamar para que? A vitória brasileira, se viesse, seria instrumentalizada pelos boçais palacianos. O choro de Neymar no final da partida foi uma emulação grotesca de uma emoção que ele não tem – e, se tem, se é real, deve reconstruir sua relação com a humanidade e com o País para que acreditemos nele. Os argentinos, que jogaram no Maracanã com a camisa da seleção deles como se envergassem padrões do Boca, do River, do Independiente ou do Racing em partidas da Libertadores, não mereceram vencer pelo conjunto. Contudo, pelo lance específico do gol – e gol, no futebol, não é detalhe, ao contrário do que Zagalo dizia – a Argentina mereceu a vitória.
A derrota de ontem pode ensinar muito ao Brasil 17 meses antes da Copa do Catar. Há tempo para construir um time. E foi muito bom e relevante não dar ao Bolsonaro e ao seu Exército de imbecis o gosto de uma vitória. Futebol e política se misturam, sim. E o sabor que esse mexidão deixa soa a fel.
Luis Costa Pinto é jornalista, escritor e consultor na Ideias, Fatos e Texto. É também membro do Jornalistas pela Democracia. Twitter: @LulaCostaPinto, Facebook: lula.costapinto
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