Mentira deslavada na CPI não constitui crime
Em conclusão, pode-se afirmar que o Art. 4º, Inciso II, da Lei Federal nº 1.579/52 não se ocupa do mentiroso, do falacioso e do bravateador. Destes quem cuida é o voto popular nas urnas
Preconiza a Lei Federal nº 1.579/52, em seu Art. 4º, Inciso II, o seguinte:
“Art. 4º. Constitui crime:
(...)
II - fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito:
Pena - A do art. 342 do Código Penal”.
Como se vê, a testemunha convocada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que fizer “afirmação falsa” cometerá crime, sujeito à pena do Art. 342 do Código Penal (Falso Testemunho ou Falsa Perícia), que prevê reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Entretanto, todos os crimes previstos na legislação brasileira, sejam no Código Penal, sejam em leis especiais, inclusive na lei que regulamenta a CPI, se sujeitam à regra geral daquele diploma insculpida em seu Art. 17:
“Crime impossível
Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.
Nas palavras de Nelson Hungria, “na tentativa com meio absolutamente inidôneo, falha uma das condições à existência de um crime (segundo a dita noção), isto é, a ocorrência, pelo menos, de real perigo de dano a um bem jurídico; na tentativa sobre objeto absolutamente impróprio, a atipicidade penal é ainda mais evidente: inexiste o bem jurídico que o agente supõe atacar. Dá-se a ineficácia absoluta do meio quando este, por sua própria essência ou natureza, é incapaz, por mais que se reitere o seu emprego, de produzir o evento a que está subordinada a consumação do crime” (Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo 2. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense. 1955. p. 96).
A afirmação falsa empregada pelo depoente, para constituir crime, deverá ser aquela capaz de influenciar, mesmo que minimamente, os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito, obstaculizando, embaraçando ou de qualquer modo dificultando a apuração do fato determinado e suas conclusões.
Se afirmo numa CPI que a capital do Brasil é Buenos Aires ou que nasci na Antártida não se vislumbra qualquer possibilidade do cometimento do crime do Art. 4º, Inciso II, da Lei Federal nº 1.579/52. Nenhum integrante da Comissão, nem seu Presidente, nem seu Relator, receberão minhas declarações como elemento de análise ou formação de convicção ou juízo de valor na condução dos trabalhos.
Igualmente, se o Presidente, Relator ou qualquer outro Parlamentar integrante da Comissão, já dispondo em mãos de prova cristalina e indubitável a respeito de determinado fato, formula pergunta apenas para testar ou experimentar o grau de honestidade das declarações do depoente a respeito deste mesmo fato, este último não incorrerá no crime de falso testemunho, pois latente a ineficácia absoluta do meio (crime impossível).
Se a Comissão investigativa possui em seu poder prova cabal de que possuo uma linha telefônica de celular ou de que meu estado civil é o de viúvo, minha mentira deslavada se revelará um nada jurídico para efeitos penais, uma vez que sem qualquer repercussão ou efeito na apuração da verdade.
Por fim, a afirmação falsa do Art. 4º, Inciso II, da Lei Federal nº 1.579/52, para constituir crime deverá ser aquela que diga respeito à apuração do “fato determinado” que deu origem à instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito. O Art. 58, §3º, da Constituição Federal proíbe expressamente que a Comissão se transforme em inquisidor universal das mazelas do universo. As perguntas formuladas deverão, assim, sempre guardar relação com o “fato determinado” em apuração, sob pena de seu indeferimento pelo Presidente.
Assim, em uma CPI, que investiga o contrabando e roubo de veículos de carga, a afirmação falsa a respeito do derretimento das calotas polares ou de meu peso em quilogramas dificilmente, senão jamais, constituirá infração penal, pois tanto a pergunta como a resposta encontram-se absolutamente dissociadas do comando do Art. 58, §3º, da Constituição Federal (“fato determinado”). Evidentemente, a pergunta que deveria ser indeferida em razão de sua impertinência temática estende sua palma ao crime impossível.
Em conclusão, pode-se afirmar que o Art. 4º, Inciso II, da Lei Federal nº 1.579/52 não se ocupa do mentiroso, do falacioso e do bravateador. Destes quem cuida é o voto popular nas urnas.
Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo
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