O bolsonarismo roubou a ideia do 'Kit Gay' e decidiu implantá-lo dentro dos quartéis
O “Kit Gay” que tanto condenaram acabou emergindo, com todas as cores e fetiches, dentro dos próprios quartéis, por obra e graça de quem mais dizia combatê-lo

Kids Pretos (Foto: Exército Brasileiro)
O bolsonarismo, herdeiro direto do moralismo hipócrita que justificava censura e repressão sob o pretexto de proteger a família, levou essa lógica ao paroxismo. Após anos acusando a esquerda de tentar implantar um inexistente “Kit Gay” nas escolas, uma farsa eleitoral e midiática tão torpe quanto eficaz, ironicamente institucionalizou a erotização da masculinidade e expôs, a níveis estratosféricos, as contradições (ou talvez revelações) dentro dos próprios quartéis.
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O culto à virilidade transformou-se em espetáculo audiovisual de proporções bíblicas, onde decrepitude, fardas com cheiro de naftalina, uma competência (duvidosa) e disciplina militar são apresentados como os ingredientes secretos da salvação nacional. Trata-se, essencialmente, de um romance tórrido entre a câmera lenta e o fetiche da ordem, temperado com uma dose generosa de testosterona condensada. As redes bolsonaristas, em um gesto de generosidade estética raramente visto fora dos sets da Brasil Paralelo, decidiram transformar o soldado brasileiro no símbolo sexual do novo milênio, uma improvável fusão entre Batman, Capitão Nascimento (do Tropa de Elite) e nosso amado Clóvis Basílio dos Santos (o “Kid Bengala”), com direito a olhares intensos, discursos sobre moral cristã, neopentecostalismo e devoração de canos de fuzil com os olhos.
Sob o nobre pretexto de exaltar os “heróis da pátria” e o militarismo, acabaram criando, sem perceber, um novo subgênero: o pornofardismo patriótico. Um espetáculo onde tanques fumacentos se transformam em extensões fálicas inquebrantáveis da autoestima política, e a defesa da nação é encenada com tanto suor, gemidos visuais e edição sensacionalista que cineastas do cinema adulto alternativo provavelmente já estão tomando notas.
Porque sejamos honestos: se isso não é um fetiche coletivo disfarçado de nacionalismo, então o desfile de 7 de setembro de 2022, em Brasília, nas comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, mais parecia uma rave temática sadomasô. Um evento onde os gritos de “Mito... Mito... Mito...!” se misturam ao mantra repetido de “Imbrochável... Imbrochável... Imbrochável...”, transformando o patriotismo em um espetáculo de testosterona e teatralidade exagerada.
A erotização institucionalizada do militarismo não é apenas uma contradição ideológica: é um sintoma explícito de um desejo reprimido operando nas entranhas da moral conservadora. O bolsonarismo, assim como outras vertentes da extrema-direita, bebe direto da fonte estética da chamada Red Pill, uma visão masculinista que glorifica uma virilidade exagerada (frequentemente digna de desconfiança), enquanto demonstra profunda aversão a qualquer expressão de sexualidade que fuja ao padrão hegemônico. Essa moral rígida, centrada no culto à disciplina, ao militarismo e à força armada, é incapaz de lidar com a diversidade da sexualidade humana. Algo profundamente freudiano, diga-se. O paradoxo é gritante: enquanto acusavam a esquerda de querer “perverter a infância” com o suposto "Kit Gay", uma invenção propagandística sem lastro na realidade, projetavam inconscientemente sua obsessão pelo controle da sexualidade, revelando sua incapacidade crônica de lidar com os próprios impulsos e contradições. A repressão não recaiu apenas sobre o discurso público, mas retornou como um bumerangue contra as próprias estruturas bolsonaristas, transformando-se numa estetização do militarismo que flerta perigosamente com os mesmos elementos de fetiche que fingiam combater.
O Brasil tornou-se palco de uma masculinidade performática, onde quartéis viraram camarins de militares envelhecidos, anacrônicos e desesperados por reafirmação, como se fossem uma versão reacionária dos Menudos. Enquanto o país enfrentava crises reais, corrupção, genocídio indígena, catástrofe pandêmica, fome e fila do osso, generais mergulhavam num festival de excessos financiado com dinheiro público: viagra, picanha, uísque 12 anos, próteses penianas de até 25 cm e “montanhas” de leite condensado. Além dos coturnos, cacetetes, algemas e fardas, o aparato militar assumiu contornos de fetiche autoritário, revelando uma estética digna de qualquer orgia BDSM, e expondo, sem disfarces, sua própria falência moral (ou talvez só seu desejo mal resolvido).
O bolsonarismo, assim como a ditadura militar com a pornochanchada, reinventou a pornografia moral: uma dissonância cognitiva em que o herói é quem distribui cloroquina e acredita na terra plana, e o vilão, o professor de história. A performance da hipermasculinidade tornou-se caricatural, desnudando a falência grotesca do conservadorismo à brasileira. No fim, o “Kit Gay” que tanto condenaram acabou emergindo, com todas as cores e fetiches, dentro dos próprios quartéis, por obra e graça de quem mais dizia combatê-lo.
Este artigo está diretamente correlacionado com “A pornochanchada e a hipocrisia moralista: da ditadura ao Bolsonarismo”, publicado em 29 de maio de 2025 no site Brasil 247. O texto explora as contradições do moralismo conservador ao longo da história, destacando como a estetização do militarismo e da masculinidade exacerbada resgata elementos do falso moralismo e da dissonância cognitiva presentes no discurso bolsonarista. Para acessar o artigo completo, acesse o link: https://www.brasil247.com/blog/a-pornochanchada-e-a-hipocrisia-moralista-da-ditadura-ao-bolsonarismo
Ivan Rios
Sindicalista, historiador, crítico de cinema, escritor, membro do Comitê Baiano de Solidariedade ao Povo da Palestina, graduando em Direito, militante dos Movimentos de Promoção, Inclusão e Difusão Cultural no Estado da Bahia
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