O desafio brasileiro

Desde 2014, a crise deixou de ser de quase estagnação para se transformar em retrocesso da renda per capita e aumento da pobreza e da desigualdade

Por Luiz Carlos Bresser-Pereira
Publicada em 26 de junho de 2020 às 14:43
O desafio brasileiro

Desde 2013 o Brasil enfrenta uma tríplice crise – política, econômica e moral – à qual se somou, em 2020, a pandemia do Covid-19. A crise econômica é a mais antiga, porque a economia brasileira sofre de semiestagnação ou de quaseestagnação desde 1980 [1]. Desde então até hoje nossa taxa de crescimento foi de 0,8% per capita contra 1,7% per capita dos países ricos e 3% dos países em desenvolvimento. Ou seja, estamos ficando para trás há muito tempo.

Para coroar esse quadro de semiestagnação, tivemos no curto prazo, em 2014, uma crise financeira interna, definida pela quebra de empresas depois de seis anos em que o Real permaneceu fortemente sobreapreciado, por grave recessão entre 2014 e 2016, e por uma recuperação anêmica da economia até o desencadeamento da crise do Covid-19 no início de 2020. Desde 2014, a crise deixou de ser de quase estagnação para se transformar em retrocesso da renda per capita e aumento da pobreza e da desigualdade.

À crise econômica somou-se a crise política, que começou com as manifestações populares de 2013. A crise política foi uma reação da classe média à clara preferência pelos pobres e trabalhadores nos governos do PT (2003-2016). A população pobre teve alguma vantagem graças ao Plano Real e depois graças à política do PT em relação ao salário mínimo e à política social. No outro extremo da estrutura social, os muitos ricos ficaram ainda mais ricos porque puderam capturar o patrimônio público através de juros muito altos pagos pela dívida pública.

No meio, a classe média ficou esquecida, espremida entre os ricos e os pobres. A crise moral, que começou com o escândalo do “Mensalão”, não se expressa apenas na corrupção que tomou conta dos grandes partidos políticos, mas também na corrupção das elites econômicas brasileiras que, em troca de reformas que reduzem os salários, apoiou a eleição de um presidente de extrema direita sem qualquer condição de governar o Brasil.

A crise política teve origem na alta classe média que se sentiu prejudicada pelos quase 14 anos de governo de um partido de centro-esquerda – algo que nunca havia acontecido antes no Brasil.

Depois da transição democrática, a despesa social do Estado, que girava em torno de 12% do PIB, subiu para 22%. A carga tributária total, que girava em torno de 22% do PIB, foi para 34%, com o aumento expressivo das despesas sociais, mas também da fatia referente aos juros (de 5% a 6% do PIB) que constituíram um enorme subsídio aos capitalistas rentistas. A classe média, que ficou espremida entre os ricos e pobres, percebeu que ela paga impostos, mas não se beneficia das despesas na área social, não se beneficia com o que o Estado gasta com saúde por meio do SUS, que ela não usa, e com o que o Estado gasta com educação fundamental e média (ela apenas usa no ensino superior público). De repente, essa classe média, que havia sido progressista durante a transição democrática, deu em 2013 uma guinada para a direita muito forte.

A crise política se agravou com o impeachment de Dilma Rousseff, com a adoção de uma política radicalmente neoliberal pelo governo Temer (que anteriormente nunca fora neoliberal), e pela eleição de um candidato de extrema direita, que afinal foi o único beneficiário da crise política. Um governo que, 18 meses depois de sua posse, está em plena crise, mas seus níveis de popularidade e de apoio na elite neoliberal não param de aumentar. Não creio, no entanto, que logrará terminar seu mandato: ou sofrerá um impeachment, ou será cassado pelo Supremo Tribunal Federal. Nos dois casos será necessário obter a aprovação pelo Congresso, o que neste momento ainda não é possível, mas logo os deputados e senadores se darão conta que continuar a apoiar um governo como este dificultará muito a sua reeleição e os que ainda o continuam apoiando retirarão seu apoio.

A quarta crise é a da Covid-19, que o governo vem enfrentando de maneira inaceitável. Sua recusa em liderar o necessário processo de confinamento e afastamento social está gerando uma explosão do número de mortos, configurando-se como um caso de genocídio.

Liberalismo ou desenvolvimentismo

Essa é a crise quádrupla que os brasileiros hoje sofrem. Diante dela, nem a direita nem a esquerda sabem o que fazer. Elas se alternaram no poder, mas fracassaram em levar o Brasil a retomar o desenvolvimento econômico. Para entender isso é preciso compreender que, no plano econômico, o Estado capitalista tem essencialmente duas alternativas, ou ele é desenvolvimentista ou ele é liberal.

Escrevi em 2017 um trabalho no qual procuro mostrar que há duas formas de organizar o capitalismo: a liberal ou a desenvolvimentista. O liberalismo econômico significa o Estado intervir o mínimo na economia, garantir apenas a propriedade e os contratos e manter equilibrada sua conta fiscal; do resto o mercado cuidaria… É uma forma intrinsecamente ineficiente de se organizar o capitalismo. A alternativa a isso é o desenvolvimentismo, um regime de política econômica no qual o Estado intervém moderadamente na economia e está voltado para a autonomia e o interesse nacional.

Na verdade, até 2017, em um trabalho sobre as duas formas de capitalismo, propus o uso da palavra desenvolvimentismo para indicar o tipo de capitalismo alternativo ao liberalismo econômico, ainda não dispunha de um termo para nomeá-lo [2]. Uma palavra com esse sentido não existe nos dicionários, nem em português, nem em inglês, francês ou alemão. O socialismo não é uma alternativa ao liberalismo, o socialismo é uma alternativa ao capitalismo. Mas essa palavra é muito necessária.

Resolvi, então, usar o termo desenvolvimentismo para significar essa alternativa. Por que desenvolvimentismo? Essa é uma denominação que surgiu por volta dos anos 1950. A primeira vez que a vi foi em Charles Tilly, um grande cientista político americano que estudou o surgimento do Estado-nação. Mas quem tornou famosa essa expressão foi Chalmer Johnson em 1982 em um livro sobre o Japão [3]. Nós aqui no Brasil já a usávamos desde os anos 1960. Há um excelente paper do Pedro Cezar Dutra Fonseca que aborda o desenvolvimentismo como um fenômeno histórico.[4] Na sua pesquisa o primeiro cientista social que ele encontrou usando o termo desenvolvimentismo foi Hélio Jaguaribe, em um texto de 1962, e a segunda pessoa fui eu próprio, em 1963, num artigo que publiquei sobre o empresário industrial e a revolução capitalista [5].

Eu sempre fui um desenvolvimentista de centro-esquerda. Inicialmente um “desenvolvimentista clássico”, como foram no Brasil Celso Furtado e Inácio Rangel, e nos anos 1990, depois de estudar o pensamento de Norberto Bobbio, me deixei atrair pela ideia de socialismo liberal. A partir de 2000, porém, ficou claro para mim que o liberalismo não teria qualquer condição de servir de guia para o desenvolvimento do Brasil e que o desenvolvimentismo precisava ser renovado. Comecei, então, a colocar em prática um projeto que considerava a muito tempo: construir um novo sistema teórico – a Teoria Novo-Desenvolvimentista – que hoje já é uma realidade.

Se pensarmos em um quadro teórico no qual adotamos os critérios progressista/conservador e desenvolvimentista/liberal, a pessoa ou o regime político pode ser progressista desenvolvimentista, como aconteceu nos Anos Dourados do Capitalismo, ou pode ser desenvolvimentista conservador como foram Alexander Hamilton e Bismarck. Já quando se é liberal, a pessoa ou o regime político é necessariamente conservador. Um progressista liberal é uma contradição desde que, na primeira metade do século XIX, os liberais se tornaram dominantes no Reino Unido e na França. Nos Estados Unidos é possível fazer essa confusão, porque na sua linguagem coloquial liberal quer dizer progressista, mas nunca uso a palavra liberal nesse sentido.

Tenho uma definição da oposição entre progressistas e conservadores. Uma pessoa é de esquerda quando está disposto a arriscar a ordem em nome da igualdade, em nome da justiça social. Isso não quer dizer que a esquerda é contra a ordem. Não, não é isso. A ordem é a condição de qualquer coisa; se a pessoa for um revolucionário, ela quebra a ordem e funda uma nova ordem. Sem ordem não há Estado. Mas se estiver disposta a arriscar essa ordem em nome da igualdade, você é de esquerda. Quando uma pessoa defende uma greve, quando ela critica o capitalismo, ela está colocando em risco a ordem e, portanto, é de esquerda. A direita prioriza fundamentalmente a ordem antes de qualquer outra coisa.

É correto afirmar que o problema fundamental do Brasil é a desigualdade, mas não haverá como combatê-la sem crescimento econômico. Se não houver crescimento econômico, o governo progressista fracassará. O governo Lula não fracassou porque agiu com responsabilidade no plano econômico, exceto em relação à taxa de câmbio (que deixou que se valorizasse brutalmente), e porque foi beneficiado por um quadro favorável de preços das commodities por nós exportadas. O Estado precisa buscar diminuir a desigualdade, mas não às custas do desenvolvimento. Por isso o Novo Desenvolvimentismo defende um desenvolvimentismo social. Quero diminuir as desigualdades, mas sei que para que haja desenvolvimento econômico é necessário que a taxa de câmbio seja competitiva e a taxa de lucro satisfatória para motivar as empresas a investirem.

O desenvolvimentismo nos países centrais

O progresso é uma tese iluminista do século XVIII, fundada na ideia da razão, do exercício do conhecimento. É o progresso racional, com a sociedade desenvolvendo-se pela via da razão. No século XX a ideia do progresso transmutou-se na ideia de desenvolvimento e, a partir da segunda metade do mesmo século, para a de “desenvolvimento humano” [6].

Nesta linha de pensamento, quais foram, então, os objetivos políticos que as sociedades modernas capitalistas, a partir do século XVIII, principalmente, definiram para si próprias? Havia, anteriormente, um objetivo, que era a preocupação com a ordem. Com a Revolução Francesa, surgiu um segundo objetivo, a liberdade individual. Com a Revolução Industrial, um terceiro, o nacionalismo econômico, ou seja, o desenvolvimentismo. Na segunda metade do século XIX surge um quarto objetivo: a justiça social e sua ideologia, o socialismo. Finalmente, no último quartel do século XX, um quinto objetivo: a proteção do meio ambiente, o ambientalismo. Portanto, cinco grandes objetivos e suas respectivas ideologias: a ordem e o conservadorismo, a liberdade individual e o liberalismo, o desenvolvimento econômico e o nacionalismo econômico ou desenvolvimentismo, a justiça social e a ideologia do socialismo,[7] e a proteção do ambiente e a ideologia do ambientalismo.

Para entender melhor o que aconteceu com a economia brasileira convém nõ ignorar a virada neoliberal ocorrida no capitalismo central a partir do final dos anos 1970. A economia dos países ricos foi liberal até 1929. Logo aconteceu o crash da Bolsa de Nova York e com isso a Grande Depressão dos anos 1930. Os países centrais mudaram então o seu regime econômico para desenvolvimentista – e isto facilitou muito a adoção do desenvolvimentismo na América Latina.

O desenvolvimentismo já está presente no New Deal de Roosevelt. Poderíamos até citar Hitler e Mussolini, mas estes foram governos tão maus que é melhor deixá-los de fora. No pós-Segunda Guerra tivemos um desenvolvimentismo como o de Roosevelt, democrático e socialdemocrático na Europa. Foi o segundo grande desenvolvimentismo da história do capitalismo. O primeiro havia sido o mercantilismo – quando ocorreram as revoluções capitalistas na Inglaterra, na França e na Bélgica.

Ainda que os americanos falem sempre de seu liberalismo econômico, até 1980 os EUA eram um país desenvolvimentista. Até 1939, tiveram altas tarifas protegendo sua economia. Precisavam disso para neutralizar sua doença holandesa, da qual não tinham o conceito, como também aconteceu aqui no Brasil, mas sabiam que sem as tarifas sua indústria não seria competitiva. Nos anos 1950, os EUA enviaram uma missão ao Brasil para nos ensinar a fazer planejamento econômico. Os EUA sempre mandaram e continuam mandando no Banco Mundial, que, ao lado da Cepal, era, até 1980, o principal ninho dos economistas desenvolvimentistas. O sistema que havia nos EUA não era liberal, mas desenvolvimentista.

O desenvolvimentismo teve no após-guerra uma teoria macroeconômica para sustentá-lo, o keynesianismo. Keynes foi um desenvolvimentista. O meu conceito de desenvolvimentismo é, naturalmente, amplo. Por isso, posso afirmar que o capitalismo é liberal ou desenvolvimentista. A partir dos anos 1940, o desenvolvimentismo “realmente existente” passou a ter uma teoria do desenvolvimento econômico, a “development economics”, que foi chamada de estruturalismo latino-americano, e que eu prefiro chamar teoria desenvolvimentista clássica. Rosenstein-Rodan, Arthur Lewis, Ragnar Nurkse, Celso Furtado, Albert Hirschman, Raul Prebisch, Hans Singer, Ignácio Rangel (e também Keynes e Kalecki, que fundaram a teoria macroeconômica) foram economistas desenvolvimentistas clássicos.

Entre 1930 e 1980 o Brasil foi desenvolvimentista apoiando-se no pensamento teórico desses economistas desenvolvimentistas clássicos. Mas a teoria desenvolvimentista clássica entrou em crise nos anos 1970, com predomino da teoria da dependência estabelecida inicialmente por André Gunder Frank. Essa teoria rejeita um componente fundamental do desenvolvimentismo: a coalizão de classes desenvolvimentista; a ideia de que, para promover o desenvolvimento econômico, geralmente é preciso que haja um acordo político básico (independente dos conflitos específicos) entre uma burguesia industrial relativamente nacional, a burocracia pública e trabalhadores, mais especificamente os trabaladores urbanos.

Coalizões desse tipo foram encontradas em todo mundo, inclusive no período do mercantilismo, onde o Estado absoluto era uma coalizão do monarca e sua corte com os grandes comerciantes, contra os senhores feudais. Depois do mercantilismo, as coalizões se formaram em contraposição aos liberais, que são contra a intervenção do Estado na economia. A crise da teoria desenvolvimentista clássica se aprofundou nos anos 1980, com a virada neoliberal nos países ricos, ao mesmo tempo em que a teoria econômica neoclássica voltava a ser dominante nas universidades, depois do intermezzo keynesiano.

Armadilhas da liberalização

O liberalismo econômico é incompatível com o desenvolvimento do país. No Brasil precisamos manter uma taxa de câmbio competitiva, mas há, normalmente, duas coisas que impedem isso: a primeira é uma “doença holandesa” não neutralizada, que se torna um grande problema quando as commodities aumentam de preço; a segunda é a política equivocada de se tentar crescer com “poupança externa”, ou seja, com endividamento externo, pois, para atrair capitais, o governo eleva a taxa de juros e isso mantém a taxa de câmbio apreciada no longo prazo.

Em uma análise muito breve, o Brasil formou seu Estado-nação e fez a sua revolução nacional e industrial, ou seja, a sua revolução capitalista, entre 1930 e 1980. Até 1930, era uma semicolônia dos impérios informais americano, inglês e francês. Com Getúlio começa a revolução nacional e industrial. Em 1980 já se podia considerar completa a revolução capitalista brasileira. Em 1985, com o sufrágio universal e a saída dos militares, o Brasil passa, afinal, a ter um regime democrático.

Ao completar sua transição democrática, o Brasil contava com uma grande indústria, exportadora de manufaturados, uma grande classe média burguesa e uma grande classe média tecnoburocrática. Era um país vitorioso. Contudo, estava naquele momento em uma crise muito grande desde 1980, a crise da dívida externa, uma crise cambial, que atingiu os países que acreditaram poder crescer com endividamento externo e déficit em conta corrente. A essa crise se somava uma alta inflação que imediatamente se tornou inercial porque o regime militar indexara a economia a partir de 1964 e a sociedade brasileira passou a fazer o mesmo, informalmente, com seus preços e salários. Uma crise que aconteceu especialmente na América Latina e na África, pouco na Ásia, e que deteve o crescimento brasileiro.

Neste período de 1930 a 1990, o regime de política econômica do Brasil foi desenvolvimentista; o capitalismo brasileiro foi desenvolvimentista; o Estado brasileiro foi desenvolvimentista. A partir de 1990 o Brasil passou a ter um regime de política econômica liberal e a economia brasileira entrou em regime de quase-estagnação. O que aconteceu? A ortodoxia liberal fala em falta de reformas liberalizantes e na chamada “armadilha da renda média”, que explicaria por que os países latino-americanos quase não crescem desde 1980. Ao atingir um nível médio de renda, o crescimento se paralisaria a não ser que reformas e mais reformas sejam realizadas. Nós as fizemos, e a situação econômica só se agravou.

Na verdade, essa armadilha da renda média não existe; o que houve foi a armadilha da liberalização. A semiestagnação não aconteceu com os países do Leste da Ásia. Na América Latina, os países não pararam de crescer porque atingiram um determinado nível de renda, mas pararam de crescer porque, diante da grande crise da dívida externa e da alta inflação inercial que ocorreram nessa década, passaram a adotar as reformas neoliberais que desmontaram as políticas que, pragmática e intuitivamente, neutralizavam sua doença holandesa (tarifas sobre a importação de manufaturados), e porque, assim que a crise da dívida externa dos anos 1980 foi superada, voltaram com mais vigor a tentar crescer com endividamento externo.

As tarifas não eram mero protecionismo; grande parte delas consistia apenas em modalidades de neutralização da “doença holandesa”. Além disso, a abertura financeira facilitou a elevação da taxa de juros, com a ideia de atrair capitais, o que acarretou um efeito deletério sobre as economias dos países latino-americanos. Isso não aconteceu com os países asiáticos. Eles não tiveram a doença holandesa, não quiseram crescer com poupança externa, excetuando-se a Coreia do Sul nos anos 1970, mas então a economia coreana crescia muito rapidamente, as oportunidades de investimento lucrativo aumentaram muito, e a propensão marginal a poupar e investir aumentou, de forma que os capitais externos que financiaram o déficit não foram utilizados para consumo, mas para investimento.

A virada neoliberal

Nos anos 1970, os Anos Dourados do capitalismo entraram em crise. O fim da convertibilidade do dólar em 1971 e o primeiro choque do petróleo em 1973 foram os dois acontecimentos que marcaram essa mudança. A taxa de crescimento de todos os países caiu e a taxa de lucro também. Surgiu a competição, então, dos países em desenvolvimento exportando manufaturados. Eram os tigres asiáticos, o Brasil e o México. Isso, é claro, incomodou muito o Império.

A reação a tudo isso se deu com a retomada do poder pelos economistas liberais e pela direita neoliberal. Em 1979 e 1980 aconteceu a “virada neoliberal”, marcada pela eleição de Ronald Reagan nos EUA e pela ascensão de Margareth Thatcher no Reino Unido. O Brasil entrou nesse regime dez anos depois. Naquele momento o Brasil vivia a crise da dívida externa e da alta inflação, que o fragilizou muito. Em 1990, com a eleição de Fernando Collor, o Brasil submeteu-se, por fim, à virada neoliberal. Realizou sua abertura comercial e financeira.

Fernando Henrique Cardoso aprofundou essa “virada neoliberal” ao promover as privatizações das empresas de utilidade pública monopolistas e ao adotar a política de “flutuação do câmbio” [8], com metas de inflação. Isso não é necessariamente liberal, mas ajudou também.

Quando Lula chegou ao poder em 2003 encontrou esse regime de política neoliberal com um programa de privatizações em massa, abertura comercial e financeira. Mas nada mudou; o neoliberalismo era vitorioso em todo o mundo e não havia apoio para uma mudança. O regime de política econômica continuou liberal. Lula colocou no Banco Central um presidente conservador, e, no Ministério da Fazenda, colocou Antônio Palocci que escolheu como seus secretários dois economistas liberais radicais, Marcos Lisboa e Joaquim Levy. Não obstante, o governo Lula terminou bem, com alta popularidade, porque se beneficiou de um grande aumento dos preços das commodities exportadas pelo Brasil.

Legou, porém, para Dilma Rousseff uma taxa de câmbio muito apreciada, que está na origem da Grande Crise Brasileira de hoje. Em 2011, Dilma tentou mudar o regime de política econômica de liberal para desenvolvimentista, mas foi incompetente e não deu certo. Logo recuou. Foi reeleita, mas, ao mesmo tempo, a classe média deu uma grande virada para a direita e que o entrou em uma profunda recessão. Isto facilitou o golpe do impeachment e a retomada do poder pelos neoliberais. Estávamos então em plena Grande Crise Brasileira. Esta só se agravou com a eleição de Jair Bolsonaro. Não houve crescimento desde o impeachment porque o liberalismo nos países da América Latina é inviável. Países com esse nível de desenvolvimento não comportam esse liberalismo, ainda mais se têm doença holandesa. Países como a Suíça, muito ricos, podem ser mais liberais; já são tão ricos que o desenvolvimento econômico deixou de ser importante para a sua população. Não é o caso do Brasil.

A crise do neoliberalismo

O neoliberalismo entra em crise em 2008. O colapso do sistema financeiro naquele ano selou o fracasso do neoliberalismo. Fracassou a desregulamentação do sistema financeiro que o neoliberalismo defendeu ferozmente. Em 2016 começou a crise política do neoliberalismo e da ortodoxia neoclássica com a eleição de Donald Trump e com a decisão do Reino Unido de realizar o Brexit. O neoliberalismo está morrendo lá no Norte, substituído por um populismo de direita tão ruim ou pior do que o neoliberalismo. Não está, porém, morrendo no Brasil, não, pelo menos, para o ministro Paulo Guedes; não para o sistema financeiro; não para as elites econômicas e políticas que, ao se associarem a um regime de política econômica incapaz de promover o desenvolvimento econômico, demonstra um profundo atraso.

O neoliberalismo é uma forma de organizar o capitalismo tão radical como o seu oposto, o estatismo que ocorreu na União Soviética. Ou a coordenação do capitalismo ocorre de uma maneira extremada, só deixando espaço para a instituição mercado; ou é extremada de outra maneira, é só Estado. A alternativa ao liberalismo econômico e ao estatismo é o desenvolvimentismo. Que, naturalmente, não garante o desenvolvimento econômico. O desenvolvimentismo só será bem sucedido se for razoavelmente bem governado. A forma liberal exige também um bom governo, mas a forma desenvolvimentista exige mais ainda, porque as decisões de poupança econômica são mais importantes nele, sendo preciso que as decisões tomadas sejam razoavelmente corretas.

Um problema da esquerda brasileira que, aliás, é um também da esquerda na Europa, é a falta de uma proposta na área econômica. Os liberais não precisam de propostas positivas; para eles basta deixar tudo por conta do mercado. No caso dos desenvolvimentistas o problema é maior porque eles precisam saber que política econômica adotar, quais setores devem permanecer no âmbito do mercado, quais aqueles em que o planejamento se faz necessário, como administrar os preços macroeconômicos que o mercado é incapaz de coordenar de maneira satisfatória. A Teoria Novo-Desenvolvimentista visa dar à centro-esquerda uma teoria econômica atualizada, que parta da grande competição que há hoje entre os Estados-nação e tenha como objetivo o desenvolvimento econômico com estabilidade, redução da desigualdade, e a luta contra o aquecimento global  [9].

A Teoria Novo-Desenvolvimentista vem sendo construída por um grupo de economistas heterodoxos originários do Desenvolvimentismo Clássico e da Teoria Econômica Pós-Keynesiana. Ela conta hoje com uma economia política, uma análise do desenvolvimento capitalista apoiada em Marx e nos desenvolvimentistas clássicos e na macroeconomia do desenvolvimento que se origina em Keynes, mas é desde o início uma macroeconomia aberta, que vê a economia nacional no quadro do capitalismo mundial; é também uma macroeconomia dinâmica desde o início porque não é uma simples macroeconomia, mas uma macroeconomia do desenvolvimento.

Os Bancos Centrais existem para controlar a inflação e os juros. Mas é preciso também que cuidem do controle do câmbio, dos salários, e da garantia de uma  taxa de lucro positiva. Costumo brincar dizendo que o Partido dos Trabalhadores (PT) tentou desenvolver um novo conceito de capitalismo – um capitalismo sem lucro… Lula fez o que pôde para ter um novo acordo desenvolvimentista com o empresariado. Mas, ao deixar que a taxa de câmbio se apreciasse brutalmente, não garantiu às empresas industriais uma taxa de lucro satisfatória a partir de 2011. Em meados de 2013, o empresariado praticamente deixou de apoiar o governo por conta disso, e também pelos erros cometidos pela ex-presidente Dilma Rousseff, por seu intervencionismo arrogante. O Estado precisa garantir ao empresariado que haja uma taxa de lucro razoável. Sem ela não há capitalismo. O PT queria o capitalismo, defendia o capitalismo, mas deixou o Real se apreciar enormemente e afetar a taxa de lucro das empresas.

O desafio brasileiro

Qual a relação do desenvolvimento econômico com os outros objetivos? Eles não são excludentes. Eles possuem contradições, é verdade, mas não são incompatíveis. Contudo, todos dependem do desenvolvimento econômico. Este é prioritário. O desenvolvimento econômico é necessário para combater a desigualdade.

Um dos erros do PT foi não ter conseguido obter o almejado desenvolvimento econômico. O surgimento da extrema direita no Brasil, que estava “dentro do armário”, foi em parte uma resposta à prioridade dada à sua prioridade aos pobres. O PT pode ter cometido muitos equívocos, mas sempre foi fiel aos mais pobres. Esse commitment do PT é importante, mas não se pode descuidar do crescimento econômico.

A revolução capitalista vincula-se com a formação do Estado-nação. Qual é a lógica fundamental, então, do Estado-nação? O Estado-nação é o tipo de organização da sociedade próprio do capitalismo, assim como o Império é o tipo de organização social próprio do escravismo. Ernest Gellner distingue as sociedades agrárias letradas e as sociedades industriais. Segundo ele, a legitimidade fundamental do Estado-nação assenta-se no desenvolvimento econômico.

A liberdade política e a democracia, como a justiça social, não são inerentes ao sistema capitalista. São conquistas das classes populares que acabaram sendo aceitas pelas elites burguesas porque não impedem a acumulação capitalista.

Notas

[1] Ver Bresser-Pereira, “40 anos de desindustrialização”, Jornal do Economista, maio de 2019.

[2] Bresser-Pereira. ”The two forms of capitalism: devopmentalism and economic liberalism”, Brazilian Journal of Political Economy 37 (4), October 2017: 680-703.

[3] Chalmers Johnson. MITI and the Japanese Miracle, Stanford: Stanford University Press, 1982.

[4] Pedro Cezar Dutra Fonseca, “Desenvolvimentismo: a construção do conceito”, in André Bojikian Calixtre, André Martins Biancarelli e Marcos Antonio Macedo Cintra, (orgs.), Presente e Futuro do Desenvolvimento Brasileiro, Rio de Janeiro: IPEA, 2014: 29-78.

[5] “O Empresário Industrial e a Revolução brasileira”, In: Revista de Administração de Empresas 2(8):11-27, julho de 1963.

[6] Ver Bresser-Pereira, “Desenvolvimento, progresso e crescimento econômico”. Lua Nova, 2014, n.93: 33-60.

[7] Aqui o socialismo deve ser compreendido como ideologia e não como modo de produção.

[8] Desde 1964 o câmbio brasileiro foi baseado em mini desvalorizações. Todo mês o Banco Central mudava a taxa de câmbio de acordo com a taxa de inflação. Em alguns momentos esse mecanismo sofreu problemas. Quando assumi o Ministério da Fazenda em 1987, o Brasil vinha do colapso do Plano Cruzado. A primeira coisa que fiz foi fazer uma depreciação de 10%. Era um sistema de câmbio fixo com mini desvalorizações. Trata-se de uma indexação do câmbio.

[9] Duas leituras recomendadas para quem quer se iniciar na teoria novo-desenvolvimentista: Bresser-Pereira, “Do Desenvolvimentismo Clássico e da Macroeconomia Pós-Keynesiana para o Novo Desenvolvimentismo”, Brazilian Journal of Political Economy 39(20) abril: 211-235; e Bresser-Pereira, “New Developmentalism: development macroeconomics for middle-income countries”, Cambridge Journal of Economics, 44: 629–646.

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