O extermínio indígena e as culpas
"Evidente que figuras do governo Bolsonaro podem ser arrolados em várias modalidades de crimes contra os povos indígenas", diz Aldo Fornazieri
Jair Bolsonaro e genocídio contra o povo Yanomami (Foto: Reprodução | ABr/Fotos Públicas)
Parte da sociedade brasileira ficou espantada e perplexa com as imagens dos Yanomami que vieram a público na última semana, graças a uma ação contundente do presidente Lula. Muitos se declararam tristes, envergonhados e indignados. Outros lembraram as imagens das cenas de fome que se abateu na África subsaariana há alguns anos. Terceiros associaram as imagens dos corpos esquálidos dos Yanomami às terríveis lembranças dos campos de concentração nazistas.
Todas essas associações são legítimas e pertinentes e acentuam a gravidade da situação dos Yanomami em particular e das populações indígenas em geral. Há elevado grau de consenso de que os povos indígenas vêm sendo submetidos a um processo de genocídio que começa com a chegada dos portugueses aqui e continua até hoje. O genocídio vem sendo perpetrado por dois meios: a violência e a contaminação por doenças. Milhões de índios morreram por esses mecanismos ao longo dos séculos. Relatório do Instituto Socioambiental mostra que os Yanomami viviam em verdadeiro campo de concentração em suas próprias terras.
Em face desse genocídio, penso ser conveniente e necessário fazer outra associação que remete à Alemanha nazista. Ela vem por meio do filósofo Karl Jaspers e seu livro “A Questão da Culpa: A Alemanha e o Nazismo”.
Ao refletir sobre as brutalidades, atrocidades e violência inauditas praticadas pela Alemanha nazista e todo o horror que elas suscitaram, Jaspers viu nelas uma situação-limite de suportabilidade da prática do mal. Mas esta é uma questão em aberto: os elementos sombrios da alma humana talvez não tenham encontrado o limite do mal no nazismo, pois o mal parece não ter limites. Mas o que é certo é que a experiência nazista foi a mais horrenda e sistemática máquina de violência e extermínio de seres humanos que se verificou até hoje na história.
A perceber a aversão que os outros povos sentiram pelos alemães, Jaspers entendeu que a sociedade alemã, o povo alemão enquanto coletividade política, não podia se furtar de assumir suas responsabilidades e suas culpas diante de tantos crimes que foram perpetrados pelo Estado nazista. Sem esta atitude, o povo alemão do pós-guerra estava diante da possibilidade de perder sua dignidade em definitivo.
A mesma questão deve ser colocar para nós, brasileiros, ao nos depararmos e refletirmos sobre o genocídio indígena. Se não assumirmos as nossas responsabilidades e as nossas culpas, além de não construirmos a nossa dignidade enquanto povo, o mais provável é que o genocídio encontre um ponto final com o extermínio de todos os povos originários. Precisamos desenvolver uma autoconsciência enquanto povo, uma autoconsciência política, de que enquanto sociedade e Estado temos uma dívida de sangue com os povos originários e com os negros no Brasil. Sem esta autoconsciência não nos construiremos enquanto nação civilizada, como sociedade de direitos, pois a nossa construção estará assentada sobre pecados originais imperdoáveis, sobre assassinatos, sobre sangue e perversidades.
Evidentemente, existem gradações e diferenciações nas culpas. E aqui podemos recorrer novamente a Jaspers. A mais alta gradação é a culpa criminal tipificada nas “ações demonstráveis objetivamente que infringem leis inequívocas”. Elas implicam em averiguação dos fatos e em julgamento pelos tribunais.
Pelo conjunto de informações que se dispõe, parece evidente que figuras do governo Bolsonaro, inclusive o próprio ex-presidente, podem ser arrolados em várias modalidades de crimes cometidos contra os povos indígenas em geral e contra os Yanomami em particular. Inclusive o crime de genocídio, como sustentam vários juristas. O escritor Lira Neto publicou um artigo historiando as ações de Bolsonaro, desde que se elegeu deputado pela primeira vez até a presidência da República, orientadas para extinguir os Yanomami.
Em segundo lugar vem a culpa política. Jaspers a atrela à corresponsabilidade que os cidadãos têm para com os governantes e suas formas de governar, seja porque os elegeram, seja porque aceitaram e toleraram os termos de criminosos de suas. Podemos acrescentar que as omissões dos políticos brasileiros de todos os partidos, das autoridades públicas, do Judiciário, diante das continuadas formas de violência contra os indígenas também constitui uma culpabilidade política. Era preciso fazer mais, denunciar mais, exigir mais. Esta culpabilidade política não implica, necessariamente, uma culpabilidade criminal.
A terceira forma de culpa é a culpa moral. Ela está relacionada ao exame e à indagação que cada indivíduo deve fazer a si mesmo em relação aos acontecimentos violentos e trágicos, que suscitaram dor, degradação e morte. Cada indivíduo deve julgar-se a si mesmo, deve perceber se não se omitiu, se não podia fazer mais para evitar sofrimentos e crimes. A culpa moral remete ao arrependimento e à expiação.
Jaspers lembra que Hitler e seus cúmplices eram incapazes de estabelecer culpa moral para si mesmos. Eram incapazes de qualquer arrependimento: “São como são. Frente a tais pessoas, cabe unicamente a força, porque eles mesmos só se sustentam pela força”.
Parece que Bolsonaro e os integrantes de seu governo que sonegaram água, comida e remédios aos indígenas, que desviaram recursos para outras finalidades, que estimularam o garimpo e o desmatamento, são pessoas incapazes de fazer qualquer exame moral, de sentir culpa a arrependimento. Os criminosos que operam as ações dos garimpeiros também são desse tipo criminoso e imoral. O mesmo ocorre com os garimpeiros que estupram crianças e adolescentes, matam, envenenam. Não reconhecem a humanidade dos povos indígenas.
As autoridades públicas que cometeram crimes contra esses povos ou que se omitiram ativa e criminosamente, precisam ser investigadas e julgadas. Os principais beneficiários da cadeia de exploração ilegal do garimpo também precisam ser identificados, presos preventivamente e julgados. Os garimpeiros que cometeram crimes individualizáveis também não podem fugir da responsabilização penal.
Mas todos os garimpeiros devem ser removidos das terras indígenas. Existem várias formas de processar essas remoções, a começar pela prisão dos principais beneficiários do garimpo ilegal, pelo corte da logística e das cadeias de abastecimento, pela destruição da infraestrutura do garimpo e assim por diante. Como são milhares de garimpeiros, o Estado deve também buscar estabelecer formas de realocação e reocupação econômica dessas pessoas. Cabe a nós, indivíduos e sociedade organizada, na medida das possibilidades de cada um, exigir que haja uma solução permanente para o fim da ocupação das terras demarcadas, para que haja a demarcação definitiva de terras pendentes e para haja o fim da tragédia dos povos originários.
Aldo Fornazieri
Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política e autor de "Liderança e Poder"
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