O golpe depende do caos
"Não é preciso sofisticação nenhuma. Bolsonaro deu a senha. As suspeitas no momento da votação serão o gatilho da confusão", escreve Moisés Mendes
Jair Bolsonaro, urnas eletrônicas e Forças Armadas (Foto: Alan Santos/PR | ABr)
São exagerados os que, olhando de fora, montam cenários sofisticados para o plano de Bolsonaro de esculhambar com a eleição.
O que pode acontecer tem muito do Brasil arcaico de bandidos e grileiros misturados a empresários e à classe média fascista e pouco das sutilezas do que poderia ser uma guerra híbrida.
Bolsonaro precisa do básico, como aconteceu em 2016 com o golpe contra Dilma Rousseff. Dilma foi derrubada pelos 300 pilantras do Congresso e o que eles representam.
É gente que não precisa de CIA, de OEA e similares. Mas, para que o golpe não fosse creditado só à bandidagem nacional, buscou-se o pretexto de algum protagonismo estrangeiro.
O plano para este ano pode depender apenas do caos promovido pela base miliciana, para que a partir daí as outras etapas sejam cumpridas, até a fase final do que seria a intervenção militar.
Até o cabo e o soldado de Eduardo Bolsonaro sabem como funcionaria. O Brasil tem 5.568 municípios. O TSE prevê que estarão funcionando na eleição algo ao redor de 580 mil urnas.
As urnas, muito mais do que a apuração, são o foco das desconfianças disseminadas por Bolsonaro. Se conseguisse levantar suspeitas em torno de apenas 0,25% dessa estrutura, o bolsonarismo teria algo ao redor de 1,5 mil urnas. É muita coisa.
É só atacar o processo de votação ampliando de forma articulada o que já foi feito espontaneamente em 2018, quando bolsonaristas inventaram erros, falhas ou fraudes mostradas em vídeos. Diziam que apertavam o 17 e que na tela aparecia o 13, ou o voto se evaporava.
O próprio Bolsonaro mostrou alguns desses vídeos na famosa live de 29 de julho do ano passado, ao lado do técnico em eletrônica Marcelo Abrieli.
O técnico é o mesmo que aparece agora, em manchete da Folha, como o interrogado que falou à Polícia Federal sobre o envolvimento dos generais Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno nos esforços para desqualificar o sistema de votação.
Bolsonaro acionou os generais, que encontraram um técnico em eletrônica, o técnico sentou-se ao lado do presidente da República, os vídeos foram mostrados e pronto: estavam ali os indícios das fraudes. Como se faz em teatro de colégio.
Não é preciso sofisticação nenhuma. Bolsonaro deu a senha. As suspeitas no momento da votação serão o gatilho da confusão. Filmem o que der pra ser filmado, provoquem arruaças nos locais de votação, gritem, provoquem, tumultuem a eleição.
Sabe-se que essa é uma parte do plano, talvez a mais decisiva para o que depois dará sequência ao roteiro.
A continuação, antes mesmo do acionamento das suspeitas sobre a apuração na ‘sala escura’, pode ser a intervenção militar num cenário de desordem.
Os vídeos com as ‘fraudes’, que podem ser divulgados durante a votação, a reprodução geométrica de mentiras, a potencialização do escândalo e os desdobramentos imprevisíveis criarão o caldo da bagunça pré-golpe. Bolsonaro aposta na esculhambação.
E aí entraria o apelo para que os generais, diante do caos, cumpram o que diz, segundo os golpistas, o artigo 142 da Constituição.
É preciso provocar a desordem e chamar então as Forças Armadas em defesa da pátria, da garantia dos poderes constitucionais e, “por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".
Bolsonaro vai defender que as Forças Armadas façam o que a Constituição manda. É o que ele diz há muito tempo. Que vai jogar dentro das quatro linhas da Constituição e que os militares estão de prontidão. É o discurso armado em cima do artigo 142, mesmo que o STF já tenha dito que não é bem assim.
Se conseguir fazer com que o caos produzido já durante a eleição seja o suficiente para a convocação dos militares, Bolsonaro poderá na sequência tumultuar a apuração para que a confusão seja apenas ampliada. Mas a eleição já estará destruída no ato da votação.
Quem achar que essa é uma distopia absurda, que antecipa um ambiente improvável, que pense no que vivemos até agora e no que aconteceu nos Estados Unidos.
Um homem com um par de guampas, seguido por milhares de desatinados que não tinham muito a perder, invadiu o Capitólio em nome de Trump.
Não deu certo porque lá os militares acompanharam de longe. Aqui, eles são parte orgânica do golpe, assumidamente protagonistas do plano de Bolsonaro. E os militares sabem que o golpe dará certo se antes houver o caos.
Bolsonaro poderá até contar com a apuração paralela de uma empresa contratada. E pode chamar todos os técnicos em eletrônica e especialistas que questionem a apuração.
Mas a participação dessa gente é complementar e somente terá sentido em meio ao caos.
Uma empresa de apuração terá pouca chance de êxito quando disser que Bolsonaro foi roubado, se o resultado oficial indicar uma vitória segura de Lula por boa margem de votos.
Mas a confusão será medonha se o resultado for apertado, a desconfiança se disseminar pelo país, a militância de extrema direita aplicar alguma dose de violência aos seus atos e se os militares reagirem como Bolsonaro espera que reajam.
Bolsonaro empurrou os militares para o golpe e os transformou em cúmplices do seu plano. Espera que, quando for feita a convocação para que interfiram, não se eximam de suas responsabilidades.
Mas pode acontecer de os militares recuarem. Pode. E aí será para Bolsonaro bem pior do que foi para Trump, que é rico, ainda é o líder da direita no seu país, tem a proteção do Judiciário e é americano.
Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
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