O golpe desenhado
'As manobras caem sobre a cabeça dos autores da intentona golpista. Há um cenário de provas que podem levá-los à cadeia', escreve a colunista Denise Assis
Jair Bolsonaro (à esq.) e General Augusto Heleno (Foto: Carolina Antunes/PR)
Tinha método. E a Polícia Federal o mapeou de forma competente e consistente. Em seu relatório estão descritos os diversos grupos e a forma de atuação de cada um, para que o golpe em favor da permanência de Jair Bolsonaro e contra a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva saísse vitorioso.
Mas, tinha uma Janja no meio do caminho. (Uma ausência de apoio dos EUA, que plantou dúvida em alguns conspiradores e o não apoio da mídia, que escaldada com o fracasso da Lava-Jato, desta vez declinou o convite para golpear). Foi a primeira-dama quem, ainda em Araraquara, para onde o grupo palaciano havia viajado a fim de apoiar os atingidos pela tragédia das chuvas, deu o primeiro alerta: “Não, GLO, não. Será passar o poder para as mãos dos militares”. E, dito e feito. Hoje, de posse do script, sabemos que ela tinha razão e a sábia decisão de Lula, em não decretar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), foi o que garantiu a sobrevivência da democracia.
De acordo com o que descrevem os investigadores, era assim que estava desenhado o golpe, dividido em seis núcleos com atividades distintas:
Ao Núcleo 1, chamado de Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral, cabia: “Forma de atuação: produção, divulgação e amplificação de notícias falsas quanto a lisura das eleições presidenciais de 2022 com a finalidade de estimular seguidores a permanecerem na frente de quarteis e instalações, das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o Golpe de Estado, conforme exposto no tópico "Das Medidas para Desacreditar o Processo Eleitoral". Dele faziam parte os seguintes personagens:Mauro Cesar Barbosa Cid – ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Ângelo Martins Denicoli, major da reserva do Exército que chegou a ocupar cargo de direção no Ministério da Saúde na gestão Eduardo Pazuello; Fernando Cerimedo; Eder Lindsay Magalhães Balbino; Hélio Ferreira Lima; Guilherme Marques Almeida, Sergio Ricardo Cavalieri de Medeiros e Tércio Arnaud Tomaz.Ao Núcleo 2, “Responsável por Incitar Militares à Aderirem ao Golpe de Estado e eleger alvos para amplificação de ataques pessoais contra militares em posição de comando que resistiam às investigadas golpistas. Os ataques eram realizados a partir da difusão em múltiplos canais e através de influenciadores em posição de autoridade perante a "audiência" militar”.
Integrantes: Walter Souza Braga Netto; Paulo Renato de Oliveira Fiqueiredo Filho, Ailton Gonçalves Moraes Barros, Bernardo Romão Correa Neto e Mauro Cesar Barbosa Filho.
O Núcleo 3 funcionava como um núcleo Jurídico, que consistia em assessorar e elaborar minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado.
Compunham o “seleto” grupo, os seguintes integrantes: Filipe Garcia Martins Pereira; Anderson Gustavo Torres; Amauri Feres Saad; Jose Eduardo de Oliveira e Silva; e Mauro Cesar Barbosa Cid.
O Núcleo 4, o Operacional de Apoio às Ações Golpistas, cabia atuar a partir da coordenação e interlocução com o então Ajudante de Ordens do Presidente Jair Bolsonaro, Mauro Cesar Cid, atuando em reuniões de planejamento e execução de medidas no sentido de manter as manifestações em frente aos quartéis militares, incluindo a mobilização, logística e financiamento de militares das forças especiais em Brasília. Os chamados “Kids Pretos”.
Compunham o grupo: Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros; Bernardo Romão Correa Neto; Hélio Ferreira Lima, Rafael Martins de Oliveira; Alex de Araújo Rodrigues e Cleverson Ney Magalhães.
Ao Núcleo 5, o de Inteligência Paralela tocava a coleta de dados e informações que pudessem auxiliar na tomada de decisões do então Presidente da República Jair Bolsonaro na consumação do Golpe de Estado. Uma das atividades desse núcleo era o monitoramento do itinerário, deslocamento e localização do Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e de possíveis outras autoridades da República com objetivo de captura e detenção quando da assinatura do decreto de Golpe de Estado. Por isto era tão importante manter em funcionamento um sistema que identificasse a localização das pessoas, como o contratado e usado na Abin, o “FirstMile”.
Era composto, claro, do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro Pereira; Marcelo Costa Câmara e Mauro Cesar Barbosa Cid.
O Núcleo 6 era o que se pode chamar de turma de “elite”. A começar pelo nome: Núcleo de Oficiais de Alta Patente com Influência e Apoio a Outros Núcleos.
Sua forma de atuar partia da alta patente militar que detinham, para influenciar e incitar apoio aos demais núcleos de atuação por meio do endosso de ações e medidas a serem adotadas para consumação do Golpe de Estado. Com a “autoridade” que o poder da hierarquia os concede, a tendência era a de que fossem seguidos pelas patentes mais baixas. Era integrado por: Walter Souza Braga Netto; Almir Garnier Santos; Mario Fernandes; Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira; Laércio Vergílio e Paulo Nogueira de Oliveira. Todas essas informações estão contidas no relatório elaborado pela Polícia Federal.
Para desvendar a estrutura caprichosamente montada pelo comando do golpe, a PF fez uso de informações e gravações colhidas nos celulares apreendidos com Mauro Cesar Cid e outros investigados. Importante destacar que Mauro Cid estava em todos os núcleos e, portanto, era a figura chave nessa conspiração. Daí todo o nervosismo de Bolsonaro ao vê-lo preso e tomar conhecimento de que o segredo do seu celular estava quebrado e de posse dos investigadores.
Um dos pontos que colocou Bolsonaro dentro da conspiração, sem sombra de dúvidas para a PF, foi a transmissão ao vivo realizada por ele, ainda em meados de 2021, com a finalidade de demonstrar indícios de ocorrência de fraudes e manipulação de votos em eleições brasileiras, decorrentes de vulnerabilidade do sistema eleitoral. Embora não conseguindo convencer ao distinto público, a atitude o comprometeu.
O outro destaque feito pelos investigadores foi: “reunião de cúpula do Poder Executivo Federal ocorrida em julho de 2022 e comandada pelo então Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO (com a participação de integrantes do governo e do Deputado Federal Filipe Barros), na qual também são apresentadas aos integrantes do alto escalão do governo alegações sabidamente inverídicas quanto à ocorrência de fraude e de manipulação nas eleições brasileiras assim como proferidos ataques e insinuações de práticas criminosas imputadas ao atual Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e aos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral Luiz Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes, cabendo destacar a orientação externada pela liderança daquele encontro no sentido de que tais informações inverídicas deveriam ser promovidas e replicadas em cada uma das áreas dos participantes”. Ou seja, sem sombra de dúvida era lá o núcleo, a usina das fake News, como sempre foi dito pelo campo progressista.”
Em se tratando do ano em que o golpe de 1964 faz 60 anos, uma coincidência de método e “personagem”. Tal como naquela articulação golpistas, esta também contou com a participação de um padre.
Os golpes em geral são feitos por militares, com apoio de parcela da igreja, mídia e o empresariado. Desta vez, não tivemos amplo apoio de mídia, como já dito. Porém, não faltou um personagem/padre. Em 1964, coube ao pároco da igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, que reunia altas damas da sociedade carioca, a organização do “Ipês de saias”.
O Ipês era o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, think-tank onde se tramou a derrubada do presidente João Goulart, e a coordenação achou por bem arregimentar as senhoras das altas rodas, para atraírem adeptos para a ideia golpista. O pároco Leovegildo Balestieri foi o responsável por promover reuniões no salão paroquial e arregimentar, distribuindo fichas de adesão, as mulheres da paróquia endinheirada. Assim, entre uma ação social e outra, elas levavam a mensagem dos conspiradores. E foram responsáveis por arregimentar a grande marcha da “Campanha da Mulher pela Democracia – CAMDE”
Desta vez, a PF chegou ao padre que atua na diocese de Osasco, na Grande São Paulo. O religioso, identificado como José Eduardo de Oliveira e Silva, foi citado como integrante do núcleo jurídico da conspiração, que atuaria no “assessoramento e elaboração de minutas de decretos com fundamentação jurídica e doutrinária que atendessem aos interesses golpistas do grupo investigado”, de acordo com a decisão do ministro Alexandre de Moraes.
José Eduardo foi alvo de um mandado de busca e apreensão e terá que cumprir medidas cautelares, incluindo a proibição de contato com os demais investigados e a proibição de se ausentar do país, com entrega de todos os passaportes no prazo de 24 horas.
Outra parte significativa da atuação dos núcleos de conspiração era a da equipe que a PF chamou de “milícias digitais”. A função dessa turma era a de reverberar e amplificar “por multicanais a ideia de que as eleições presidenciais foram fraudadas, estimulando seus seguidores a "resistirem" na frente de quarteis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para uma intervenção federal comandada pelas forças militares, sob o pretexto de aturarem como uma espécie de Poder Moderador.” O tal do 142.
De acordo com a interpretação dada pela PF, a representação peticionada pelo Partido Liberal junto ao Tribunal Superior Eleitoral (Que culminou em uma multa no valor de R$ 22,9 milhões), configuraria o “ato último do grupo para insurgir-se formalmente contra o resultado das eleições presidenciais, na busca por antecipar fundamento à execução de um golpe de Estado, inclusive sob a alegação de esgotamento dos meios legais de contestação do resultado, tudo a fim de reforçar o discurso de atuação ilícita do Poder Judiciário para impedir a reeleição do então Presidente Jair Bolsonaro.
Todas essas manobras, agora, caem sobre a cabeça dos autores, que de hora em hora têm um novo cenário de provas concretas que podem levá-los à cadeia e a um bom par de anos de condenação.
Denise Assis
Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".
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