O governo ainda está infestado de bolsonaristas
"Os civis são em maior número entre mais de 30 mil comissionados. Mas são os militares o maior desafio para Lula", escreve Moisés Mendes
Jair Bolsonaro (Foto: Reuters)
Não são apenas os militares de Bolsonaro que continuam sentados em seus gabinetes e nas mais variadas repartições dos escalões intermediários no governo Lula. São também os civis em cargos comissionados. São milhares.
A direita nunca se afastou com facilidade de coisas antigas, como departamentos, seções e repartições públicas. Com a extrema direita, é mais complicado. A extrema direita adora uma repartição.
O esperado seria que ocupantes de cargos de confiança, que não fazem parte de quadros do Estado, pedissem para sair logo depois da fuga de Bolsonaro.
Mas se sabe que eles não pedem. É parte do dilema de um quebra-cabeças sempre presente em troca de governo.
Não mexam com todo mundo, aleatoriamente, e muito menos com aquele cara ali, porque pode ser um extremista, mas é afilhado do Kassab. É preciso contemplar demandas dos aliados.
Não há como substituir com afobação. Não há como saber, em pouco mais de 40 dias de governo, quais dos 6 mil militares empregados por Bolsonaro são de fato bolsonaristas ou simpatizantes de ideias golpistas e quais podem ter a chance de permanecer, se é que devem.
Mas há militares que não são golpistas? Claro que há. Mas há dentro do governo, em cargos de confiança cedidos por Bolsonaro e pelos seus militares tutores que ocupavam posição superior?
É possível que existam militares democratas nas mais variadas funções. Assim como existiram mais de 6 mil militares democratas perseguidos pela ditadura depois de 1968.
A maior infestação nem é a de militares que passam a ser avaliados pelo novo governo, para que setores estratégicos não sejam ocupados por infiltrados. É a infestação de civis mesmo.
Os expurgos são do jogo da alternância no poder. E ainda mais presentes numa democracia que procura reabilitar suas forças depois de quatro anos de fascismo.
Os civis são em maior número entre mais de 30 mil comissionados. Mas são os militares o maior desafio para Lula. Como tirar da cadeira os que continuam sentados?
É uma turma grande. Um retrato da militarização do governo, com o levantamento de fardados em cargos e funções comissionadas, foi feito por Flávia de Holanda Schmidt, técnica do Ipea. O estudo dá a dimensão do desafio.
O levantamento abrange o período de 2013 a 2021, a partir de dados do Tribunal de Contas da União, e mostra que o governo tinha 6.157 militares em cargos de confiança em 2020.
O número de militares aumentou 59% no período. Mas o número de militares em funções que deveriam ser de civis aumentou 193%.
Há estimativas de que o número total de militares tenha passado de 10 mil. Não houve atualização do estudo, até porque Flávia ocupava uma diretoria do Ipea e foi demitida com toda a direção em março de 2022.
Gente do governo Lula ainda divide salas, cadeiras, mesas e cafezinho com gente do tempo de Bolsonaro. Não há como trocar todo mundo, até porque nem todo mundo será trocado.
A infestação que permanece cria desconforto, inquietação e desconfiança num cenário nunca experimentado antes. Lula recebeu o governo de Fernando Henrique Cardoso em 2003.
Foi uma transição com queixas, mas hoje se sabe que foi uma barbada. E Lula passou o governo a Dilma em 2011. Passaram-se duas décadas desde 2003. São 20 anos de saudade da direita tucana.
Bolsonaro destruiu o Estado loteado de militares que o tutelavam em troca de poder e emprego. Muitos em funções para as quais não estavam habilitados, inclusive no primeiro escalão.
Lula não está se livrando de um projeto de poder militar para o país, porque esse projeto, por mais que se procure, nunca existiu. Existia um projeto de poder para empregar militares.
Livrar-se dos generais de Bolsonaro foi a etapa politicamente mais complexa, ainda inconclusa. Agora é preciso livrar-se dos coronéis, majores e capitães, e essa é a missão de operação mais complicada.
Porque envolve embates diretos das novas chefias com gente convencida de que nunca mais deixaria o governo.
Uma transição normal, em todas as instâncias, acontece naturalmente a cada mudança de governo, mesmo que com alguma demora e alguns traumas. Uma transição em meio a uma infestação pede urgência.
Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
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