Os 40 anos da Anistia e o renascer do autoritarismo

​​​​​​​Há 40 anos, em 28 de agosto de 1979, o último ditador-presidente, João Batista Figueiredo, sancionava a Lei 6683

Tereza Cruvinel
Publicada em 29 de agosto de 2019 às 09:57
Os 40 anos da Anistia e o renascer do autoritarismo

Há 40 anos, em 28 de agosto de 1979, o último ditador-presidente, João Batista Figueiredo, sancionava a Lei 6683, recém-votada pelo Congresso, a Lei da Anistia, prenúncio do fim da ditadura. Mais de sete mil brasileiros viviam no exílio e ainda havia cerca de 800 presos políticos, fora os mortos e os desaparecidos. Os exilados voltaram, os presos acabaram todos libertados mas a lei garantiu também impunidade aos que sequestraram, torturam, mataram e sumiram com os corpos.  A correlação de forças, na época, não permitiu a rejeição do perdão recíproco.  Seis anos depois foi que o poder voltou aos civis. Nas décadas seguintes aprimoramos a vivência e o sistema democrático, até que tudo começou a desmoronar em 2016, e aqui estamos, sob um governo de índole autoritária que vem restaurando o poder militar, anulando conquistas e a própria efetividade da Lei da Anistia.

Em 1979 mais de sete mil brasileiros viviam no exílio e mais de 800 eram presos políticos. A luta começou com Terezinha Zerbini e seu Movimento Feminino pela Anistia, que tinha apoio da Igreja Católica, mas tornou-se bandeira mais ampla em 1977, com a volta do movimento estudantil - do qual foi marco a greve da UnB, de que participei e na qual, como tantos outros, fui presa e punida.  Iramaia Benjamin criou o primeiro CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia, no Rio, com apoio da ABI, OAB, CNBB e outras entidades. Outros CBAs foram criados Brasil afora e os atos públicos, inicialmente tímidos, começaram a crescer. Geisel ainda governava, prometendo abertura controlada. O Congresso, embora dominado pela Arena, abraçou a bandeira também. Em 1979 o sucessor Figueiredo propõe a lei que seria aprovada em agosto.

Nos dias que se seguiram à sanção os exilados começaram a chegar. No primeiro grupo, chegou Dulce Maia, que fora banida. No 7 de Setembro chegou Leonel Brizola, após 15 anos de exílio, saudoso “mas com o coração limpo de ódios”. Chegaram Prestes, Miguel Arrais e tantos outros. Vivendo um final de clandestinidade na Baixada Fluminense, por conta de um processo em Brasília, eu e meu companheiro de então, Julio Tavares, chegamos a ir ao Galeão assistir a uma destas chegadas. O sistema de som tocava “O bêbado e a equilibrista”, a música de João Bosco e Aldir Blanc que, na voz de Elis Regina, tornara-se o hino da campanha da Anistia. Falava de um Brasil que chorava pela volta do irmão do Henfil. O irmão do cartunista, Betinho, chegaria mais para o final de setembro.  

Tanto tempo depois, ainda “choram Marias e Clarices no solo do Brasil”. Marias pobres e desconhecidas, cujos filhos são mortos por policiais que também ficam impunes.  Clarices que têm filhos ou maridos torturados nas delegacias de polícia, onde a tortura ainda é muito aplicada a presos comuns.

Tanto depois, Bolsonaro governa com os militares e faz do poder armado o pilar e o símbolo de seu governo. Como agora, mandando tropas para combater o incêndio amazônico provocado por seu próprio discurso anti-ambientalista, anti-ecológico, anti-índios, anti-Ongs.  Os que torturaram e mataram vão morrendo sem pagar pelos crimes, e agora é que não pagarão mesmo.  Tentativas de mudar a reciprocidade da lei fracassaram, mas tem razão é José Genoíno: o melhor teria sido que os governos democráticos, de FHC ou de Lula e Dilma, tivessem forçado um pedido de desculpas das Forças Armadas à Nação, reconhecendo o que fizeram. Com isso, não teríamos aí um presidente que nega ter havido ditadura, nem direitistas pedindo a volta do regime militar. Teria sido a melhor forma de bloquear novas tentações autoritárias.

Entre tantos desmontes do que foi construído nos anos dourados da democracia, Bolsonaro vem liquidando também com o legado da Lei da Anistia. Fernando Henrique ampliou o alcance da lei e criou em 1995 a Comissão de Mortos e Desaparecidos, tendo José Gregori, ministro da Justiça, como organizador. Recentemente o governo Bolsonaro trocou três de seus membros por militares e deputados do PSL, forçando a saída da procuradora Eugênia Gonzaga da presidência.  O presidente havia ficado furioso por  ter a Comissão reconhecido que Fernando Santa Cruz foi morto pela ditadura, concedendo o atestado de óbito aos familiares. Por isso o ataque à memória do morto e o insulto a seu filho, o presidente da OAB Felipe Santa Cruz.

A Comissão Nacional de Anistia, onde ainda tramitam milhares de pedidos de reparação, também teve seus membros trocados pela ministra Damares e recentemente suspendeu o julgamento do pedido de anistia de Dilma Rousseff, que havia tido a dignidade de pedir que ele não fosse examinado enquanto ela fosse ministra, e depois presidente da República. Ela foi torturada durante 19 dias sob o comando do coronel Ustra. “O terror da Dilma na prisão”, diria Bolsonaro ao votar a favor do impeachment, dedicando o voto ao torturador. Naquele momento, o Congresso deveria tê-lo punido por fazer apologia à ditadura e à tortura.

E vai se perdendo também todo o trabalho, feito principalmente por Nilmário Miranda e Paulo Vanucci, de preservação do direito à memória e à verdade. Não, não podemos esquecer o que se passou neste país, justo agora quando o passado ameaça voltar, se não com a mesma forma de outrora, mas com outras vestes e outras armas, atentando porém, do mesmo modo, contra a liberdade, a democracia e a justiça.

*Colunista do 247, Tereza Cruvinel é uma das mais respeitadas jornalistas políticas do País

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