'Podres poderes'
Cada episódio como o de Santa Catarina vai continuar provocando revolta e repulsa. Até que aconteça o próximo. E vai acontecer, enquanto cada brasileiro não abominar, com verdadeiro horror, o preconceito e a misoginia
Andrey Cavalcante
“Quo usque tanden”, reclamava Cícero, na primeira das Catilinárias. – “Até quando?” - Deveria se perguntar cada cidadão brasileiro dotado de um mínimo de respeito à dignidade humana, inconformado com a indignidade escancarada no julgamento do acusado pelo estupro da influencer Mariana Ferrer. O resultado inocentou o réu e introduziu no anedotário jurídico do país a figura inapelavelmente amoral do “estupro culposo”.
É preciso deixar estabelecido: aquilo que se viu no julgamento, claramente demonstrado nas imagens exaustivamente exibidas em todo o país não é o mal em si. É sintoma de uma crise moral que avassala pelo mundo inteiro e cujo combate exige mobilização tão intensa quanto aquela do combate à covid-19. Esclareço, antes que me condenem: se a pandemia ameaça a humanidade, a crise moral afronta as conquistas do sentimento humano, da civilização, para nos conduzir a todos de volta à barbárie.
O Ministério Público de Santa Catarina apressou-se a distribuir nota na tentativa de reduzir os efeitos do estrago causado à imagem da instituição pela atuação do promotor no julgamento do empresário André de Camargo Aranha, que foi considerado inocente na acusação de estupro de Mariana Ferrer. Diz a nota que não se falou de “estupro culposo”, como foi noticiado, e que o vídeo que circulou foi editado. Mas as imagens originais comprovam que, efetivamente, juiz e promotor de Justiça ficaram pusilânimes diante das afirmações do advogado de defesa, que atribuiu à vítima a culpa pelo crime.
O que se constatou naquele julgamento foi a exibição escancarada da cultura androcêntrica de que está acometida a sociedade. Tanto, que juiz e promotor se deixaram conduzir, facilmente manadeados pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho que responde, ele próprio, a ação criminal movida pelo MP de Santa Catarina. Felizmente o Conselho Federal da OAB não admite que passe incólume qualquer desvio ético. A Ordem já anunciou, em Nota Pública, que a seccional de Santa Catarina já instaurou processo disciplinar para apurar a conduta do advogado.
À nota da OAB somam-se manifestações de repulsa registradas em todo o país. Mas isso remete, lamentavelmente, à preocupação acima assinalada. Por mais intensas que se apresentem as manifestações públicas de indignação, ataca-se a consequência do problema, não a causa. Isso acontece em todo o mundo. As eleições nos EUA comprovam o raciocínio. Embora tenha recebido mais de 75 milhões de votos, o que o coloca como recordista na História eleitoral daquele país, seu adversário, o atual presidente, reconhecidamente machista e misógino, obteve apoio de quase metade do eleitorado.
É preciso conferir atualidade ao pensamento de Caetano Veloso, em sua verdadeira obra prima “Podres Poderes”, lançada em 1984, como observa o sociólogo e professor Roniel Sampaio, em sua análise da música naquele momento político. A sociedade brasileira só mudará seus aspectos políticos mais profundos a partir de mudanças na cultura, como diria Betinho: “Um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim, pela sua cultura”.
O certo é que todo o episódio que envolveu Mariana Ferrer é algo tão ultrajante para todo o sistema judicial brasileiro que até Cícero se levantaria de seu leito na história para reclamar: “O tempora, o mores!”. Não há, na verdade, como acalentar esperanças nesse tempo, nessa cultura, enquanto não mudarem os paradigmas socioculturais. Cada episódio como o de Santa Catarina vai continuar provocando revolva e repulsa. Até que aconteça o próximo. E vai acontecer, enquanto cada brasileiro não abominar, com verdadeiro horror, o preconceito e a misoginia. Caso contrário, permanecerá viva e tendente ao agravamento a realidade que provocou a advertência de Caetano:-
- “Enquanto os homens / Exercem seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais (...) / Será que essa minha estúpida retórica / Terá que soar, terá que se ouvir / Por mais zil anos / Ou então cada paisano e cada capataz / Com sua burrice fará jorrar sangue demais / Nos pantanais, nas cidades / Caatingas e nos gerais”.
*Andrey Cavalcante. Advogado. Conselheiro Federal da OAB. Membro honorário vitalício da OAB/RO.
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