Procuradoria recomenda ao governo suspensão imediata de ato que descaracteriza homeschooling como evasão escolar

Ministério determinou que conselhos tutelares exclua crianças educadas em casa de lista sobre abandono da escola. Medida fere legislação.

PGR/Foto: freeimages.com
Publicada em 12 de julho de 2019 às 12:58
Procuradoria recomenda ao governo suspensão imediata de ato que descaracteriza homeschooling como evasão escolar

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, encaminhou na quinta-feira (11) ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) uma Recomendação para que o órgão suspenda, imediatamente, as orientações encaminhadas a Conselhos Tutelares em todo o Brasil para que deixem de cumprir o que estabelece a legislação acerca de crianças e adolescentes mantidas fora de instituições de ensino regular.
 
A determinação foi feita pelo MMFDH em 28 de maio, por meio de um ofício circular. O documento orienta a conselheiros tutelares que crianças e adolescentes educados em casa, o chamado homeschooling, não mais deverão ser identificados como se estivessem em situação de abandono intelectual.
 
Ainda de acordo com a deliberação do MMFDH, essas crianças e adolescentes, bem como as famílias educadoras, também deverão ser excluídas de eventuais listas de evasão escolar até que seja concluída a tramitação do Projeto de Lei 2.401/2019. A proposição busca alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com vista a permitir a educação domiciliar.
 
De acordo com a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, a manutenção dessa ordem aos Conselhos Tutelares pode ensejar a propositura de reclamação constitucional – uma vez que atribui efeitos jurídicos a projeto de lei ainda não aprovado pelo Congresso Nacional, e cuja aprovação é evento futuro e incerto, que depende de amplo debate.
 
O órgão do Ministério Público Federal esclarece que a medida contraria decisão já proferida pelo Supremo Tribunal Federal acerca do tema, além de violar frontalmente o que estabelece a legislação nacional e internacional, visto que estão em plena vigência as normas do ordenamento jurídico que definem a obrigação dos responsáveis legais de zelar pelo bem-estar do educando.
 
Além de prevista no art. 205 da Constituição Federal como um direito de todos e um dever do Estado e da Família, o acesso à educação é garantia estabelecida por um amplo arcabouço legal nacional e internacional.
 
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) aponta como uma obrigação dos responsáveis legais zelar pelo bem-estar do educando, devendo, obrigatoriamente, promover a matrícula deste na rede pública ou privada de ensino, a fim de que possa acompanhar o processo educativo formal – sob pena de intervenção do Ministério Público.
 
Do mesmo modo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9.394/1996) estabelece em seu art. 1º que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. De acordo com o texto, a educação escolar deve se desenvolver, predominantemente, por meio do ensino e em instituições próprias.
 
Em âmbito internacional, a Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pelo Brasil em 1990, assegura a educação como um instrumento de convivência e diversidade, definindo que os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada no sentido de desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da criança em todo o seu potencial, além de imbuir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. O direito ao acesso e à permanência na escola também estão elencados em documentos como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada em 2009 pelo Brasil como norma constitucional, e na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e promulgada pelo país em 2002.
 
Educação para o exercício da cidadania
Em 2000, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu o Parecer n. 34, que trata especificamente do ensino domiciliar. De acordo com o órgão, o homeschooling não se configura como modalidade de educação formal, indispensável à formação da pessoa como cidadão.
 
Na Recomendação à ministra Damares Alves, a Procuradoria menciona trechos do Parecer CNE e aponta que família, sociedade, organizações culturais e outras são todas cooperadoras no desenvolvimento de uma educação visando à plena cidadania. Mas a escola é agência indispensável, na conjugação dos deveres da família e do Estado, conforme o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
 
Ainda de acordo com o documento, ao determinar que o ensino fundamental é presencial, na escola, e que nele se exige um mínimo de 75% de frequência, a legislação brasileira enfatizou a importância da troca de experiências, do exercício da tolerância recíproca, não sob o controle dos pais, mas no convívio das salas de aula, dos corredores escolares, dos espaços de recreio, nas excursões em grupo fora da escola, na organização de atividades esportivas, literárias ou de sociabilidade, que demandam mais que os irmãos apenas – de modo a reproduzir a sociedade, onde a cidadania será exercida.
 
É sob essa perspectiva que, em 2018, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG) publicou enunciado e também nota técnica na qual orienta o não reconhecimento do ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio adequado para o cumprimento do dever de educação assegurado na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
 
A compreensão também está presente em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário 888.815, na qual afirmou que: “a Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações”.

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