Quem ama não mata! Esfaqueia e é absolvido

Mais medieval, impossível. Vamos ter que voltar a pichar os muros das principais cidades brasileiras, com o slogan que os estampou, em meados dos anos de 1970

Denise Assis
Publicada em 01 de outubro de 2020 às 08:59

Houvesse alguma dúvida sobre o retrocesso vivido hoje no Brasil e este caso seria a gota d´água para pavimentar a tese de que vamos, a cada dia, ao encontro de um passado que deveria estar morto e sepultado. Por três votos a dois, ministros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, entre eles uma mulher, sim, a ministra Rosa Weber, respaldaram a absolvição de um acusado de esfaquear a mulher “em legítima defesa da honra”. Mais medieval, impossível. Vamos ter que voltar a pichar os muros das principais cidades brasileiras, com o slogan que os estampou, em meados dos anos de 1970: “Quem ama não mata!”

A ministra Rosa, podendo decepcionar, não nos falha. Foi assim, quando em 15 de outubro de 2018, numa coletiva de imprensa que poderia ter mudado os rumos do cenário político, clamou aos céus por “milagre”, para solucionar um caso de denúncia grave sobre fake news pró Bolsonaro. Bastavam alguns cliques no computador do seu gabinete, para Rosa Weber verificar a profundidade das apurações feitas pela jornalista Patrícia Campos Melo. A ministra deveria ter deixado Deus em paz, cuidando para nos livrar do que viria. Mas não. Preferiu evocá-lo, a interromper um processo que envolveu um exército de robôs e empresas estrangeiras, e que nos jogou no atual obscurantismo. Trazendo-a à cena é de se admirar ver uma mulher votando favorável sob tal argumento, (“em defesa da honra”) ainda nos dias de hoje. E ela o fez.

É preciso que fiquemos atentos aos recuos. Não apenas de comportamento. O chargista Aroeira (247) foi arrolado na Lei de Segurança Nacional (LSN) – este entulho autoritário -, por publicar uma charge com críticas a Bolsonaro. O jornalista Ricardo Noblat, também, por republicar a mesma charge. Hélio Schwartsman, colunista da Folha de São Paulo, enquadrado na LSN, por escrever um desejo de que Bolsonaro morresse por Covid-19. (Tivesse André Mendonça – o ministro da Justiça, que o enquadrou – aparelho de leitura de pensamento e as cadeias do país seriam insuficientes para botar lá dentro todos os que desejaram a mesma coisa).

A jogadora de vôlei Carol Solberg pode ser condenada a pagar R$ 100 mil e ser suspensa de seis torneios caso seja condenada no âmbito da denúncia apresentada pela procuradoria do Tribunal Superior da Justiça Desportiva (STJD). Isto, por ter gritado “fora, Bolsonaro”, ao fim de um torneio. (Não falta por aí quem queira fazer coro com Carol). O jornalista Luiz Nassif teve de retirar do seu blog 11 matérias para atender a uma determinação da Justiça (Censura!). Os números de mortos da Covid19 deixaram de ser fornecidos oficialmente pelo Ministério da Saúde, porque um general que está no comando da pasta considerou que eram muitos e prejudicavam o governo. (Censura!). E, por fim, a Rede Globo está proibida de publicar documentos sobre o inquérito das “Rachadinhas”, sobejamente sabido que envolvem o filho 01 de Bolsonaro. (Censura!).

Não bastasse toda essa viagem ao túnel do tempo. Precisamos destacar que a atual absolvição, corroborada pelos ministros Marco Aurélio Mello – um histriônico conservador – e Dias Toffoli, mais velho do que todos eles juntos, (porque é velho de alma) é um péssimo combustível para azeitar a estatística de feminicídios no Brasil.

A convivência constante, o dia inteiro, imposta pelo isolamento social, na pandemia, fez subir a violência doméstica em alguns lares país a fora. De acordo com levantamento do ‘Monitor da Violência’, o aumento foi significativo. Nos primeiros seis meses de 2020 foram mortas 1.890 mulheres, de forma violenta. O número representa um acréscimo de 2% em relação ao mesmo período de 2019. E, ainda, segundo o levantamento, 631 desses crimes foram de ódio motivados pela condição de gênero, ou seja, feminicídio. Outro ponto a ser destacado é que as principais vítimas, conforme o estudo, são mulheres negras.

O júri que optou pela absolvição do homem que, suspeitando de traição, desfechou facadas contra a companheira se deu em 2017. A defesa sustentou (tal como o advogado de Doca Street, o namorado da estrela do hight society mineiro, Ângela Diniz, morta por ele em 30 de dezembro de 1976), que o ataque estava amparado na “legítima defesa da honra”. A “motivação” ganhou apoio unânime dos jurados.

Ao ser entrevistado pelo jornal O Estado de São Paulo, José Ramos Guedes, advogado do agressor, disse: “é uma história entre marido e mulher. Aleguei legítima defesa da honra. O sujeito confia na pessoa e ela sai para fazer uma coisa… Ele ficou aborrecido, se sentiu desonrado”, completou o advogado.

Os ministros do STF entenderam que a decisão pelo tribunal do júri é soberana e não pode ser modificada. Então tá. É tempo de retrocesso. Preparem os seus tubos de spray e inundem os muros que ainda restam vazios – os demais estão pichados com a palavra de ordem: “fora Bolsonaro” -, e escrevam lá: “Quem ama não mata!”

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