República de Canalhas
Posso até ter feito bobagens quando estive à frente do último governo, mas o eleitor não tem memoria suficiente para ver isso.
Sou um notório ladrão, pois quando estive no poder, consegui desviar muitos reais para a minha conta particular e também para beneficiar meus familiares e amigos. Quando governava, fiz conchavos com empreiteiros e sempre governei somente pensando naqueles que financiaram a minha campanha. Nunca fiz nada pelos pobres e desassistidos, pois o voto deles é certo. É muito fácil enganar um sujeito sem leitura de mundo e sem informações. Basta falar algumas palavras bonitas que eles não entendem e está armada a arapuca. Eles, os pobres, ficam loucos e se apaixonam logo pelos nossos discursos eloquentes. Muitos chegam até a brigar por causa de nós, os políticos. Com
pouco dinheiro, consegue-se arrumar alguns puxa-sacos para nos defender. Fazer campanha para pessoas estúpidas e despolitizadas é uma das coisas mais fáceis que há.
Já fui investigado em várias operações da Polícia Federal e mesmo assim sou candidato pela milésima vez. E vou ser eleito de novo. Mesmo que eu não pudesse me candidatar, colocaria um parente meu ou um amigo para concorrer que de qualquer maneira eu estaria eleito, pois sempre “ajudei” os mais pobres. Ainda que eu estivesse preso, governaria de dentro da cadeia. Nada foi provado contra mim e nem será. O meu partido nunca sairá do poder, pois faz coligações “a torto e a direito”. Depende apenas das conveniências. Governando, compro o voto dos parlamentares e todas as minhas emendas e proposições virarão lei. Não lutarei pelas comunidades mais carentes e afastadas do centro do poder. Eles que procurem suas melhoras. São livres para isso. Mesmo assim, haverá quem me defenda nas eleições. Tenho seguidores aguerridos.
Não sou ateu, mas sei usar a religião de maneira muito útil. Estou na missa, no culto e vou à umbanda. Converso até com os ateus. Líderes religiosos me apoiam incondicionalmente e convencem sem muitas dificuldades todos os seus fieis a votarem em mim. Sou casado pela terceira vez e tenho dois filhos “por fora”, mas defendo intransigentemente a família. Isso dá votos, pois muitos imbecis e trouxas adoram todos
os candidatos que defendem a família. A mulher não devia participar da política nem das decisões que só cabem a nós homens. Mas não assumo esta postura publicamente para não perder o apoio e, claro, o voto feminino. Os negros, índios e quilombolas deviam reconhecer o seu lugar na sociedade, mas igualmente não digo isso para ninguém ouvir. Eles são muitos e o voto deles é muito importante para o meu projeto.
Sou favorável à pena de morte e à justiça com as próprias mãos. Odeio esse negócio de direitos humanos. Mas é preciso ter muito jogo de cintura para lidar com essas coisas. Nesta época não se pode perder votos à toa. Todo preso vai trabalhar para custear suas despesas. Nas escolas, que continuarão com turno único em meu governo, todos os alunos serão obrigados a cantar o hino nacional diariamente e a prestar
continência aos seus superiores. Isso vai revolucionar o ensino no país. Ideologia de gênero, participação popular, orçamento participativo, esquerdas, novos tipos de família e outras “baboseiras” não mais serão ensinados a nenhum estudante. Governarei para o povo e com o povo. Sou o novo na política. Posso até ter feito bobagens quando estive à frente do último governo, mas o eleitor não tem memoria suficiente para ver isso. Serei eleito facilmente com o voto dos mais humildes. A democracia não é um bom regime?
*É Professor em Porto Velho.
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