'Tropas Estelares' brasileiras: os estados reféns da farda
"De SP à BA, passando pelo CE, violência policial mostra que desafio de equilibrar segurança pública e democracia não se limita a espectros políticos"
Polícia Militar de São Paulo (Foto: Governo do Estado de São Paulo)
No livro Tropas Estelares, de Robert A. Heinlein, o militarismo é a base de uma sociedade organizada em torno do serviço armado, que define quem é digno de cidadania. A narrativa árida (chata mesmo) explora como a lógica da força e do combate se infiltra em todas as esferas, concentrando poder nas mãos das forças militares. Na obra de 1959, Heinlein constrói um mundo onde o dever militar não é apenas um meio de defesa, mas uma estrutura central de organização política, relegando questões como responsabilidade democrática a um segundo plano.
Aqui, na vida real do Brasil, a violência policial e a crescente autonomia das forças de segurança continuam a desafiar os limites do controle civil. A realidade brasileira, marcada por episódios de abuso e pela dificuldade de implementar transparência, se aproxima da distopia criada por Heinlein: uma sociedade onde o controle e a força sobrepõem-se aos direitos civis e à democracia.
Em São Paulo, sob o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), a escalada de violência policial atingiu proporções preocupantes. Em 2023, o estado registrou 716 mortes decorrentes de ações policiais, e, de janeiro a outubro de 2024, esse número já alcançou 676 mortes, consolidando uma média de quase duas mortes por dia. A Operação Escudo, amplamente criticada por execuções sumárias e abuso da força, resultou em 28 mortes em apenas uma semana no litoral paulista, destacando o caráter sistemático da letalidade policial no estado.
Embora Tarcísio tenha anunciado a ampliação do programa de câmeras corporais após inicialmente desacreditá-lo, essa decisão parece mais uma tentativa de apagar o incêndio político do que uma transformação ética ou administrativa. A gestão continua alinhada à lógica militarizada que tem alimentado os abusos, personificada pelo secretário Guilherme Derrite, cuja permanência no cargo contrasta com qualquer discurso de mudança estrutural. Os casos mais recentes reforçam a urgência de mudanças reais. Imagens de um rapaz arremessado de uma ponte por um policial militar e de outro, morto com 11 tiros nas costas ao sair de um supermercado, evidenciaram de forma brutal o padrão de violência policial. Esses episódios, somados à morte de Genivaldo de Jesus Santos, em 2022, em uma câmara de gás improvisada pela Polícia Rodoviária Federal, escancaram a necessidade de reformas no sistema de segurança pública. A gestão de Tarcísio, ao hesitar em enfrentar as raízes da crise, ilustra uma lógica que privilegia respostas pontuais e reativas, enquanto o controle civil e a responsabilização permanecem em segundo plano.
Longe do dirscurso de que a violência policial acontece ao ser autorizada por governadores de direita e extrema direita, na Bahia, governada pelo PT há quase 20 anos, não foge à lógica militarizada. Em 2022, o estado liderou o ranking nacional de letalidade policial, com mais de 1.400 mortes registradas por ações das forças de segurança, o que correspondeu a 23% do total nacional. No Ceará, embora os motins policiais sejam o episódio mais marcante da crise na segurança pública, o histórico de violência ganhou notoriedade com a Chacina do Curió (2015) durante o governo de Camilo Santana (PT). O massacre deixou 11 mortos em um bairro periférico de Fortaleza, em retaliação ao assassinato de um policial militar.
Os motins, ocorridos em 2011 e 2020, escancararam a fragilidade no controle sobre as forças de segurança. O mais recente foi marcado por cenas como o tiro disparado contra o senador Cid Gomes (PSB), que tentava desobstruir um quartel usando uma retroescavadeira. O episódio não apenas paralisou o estado e gerou aumento nos índices de violência, mas também expôs a incapacidade do governo de retomar o controle sobre uma Polícia Militar cada vez mais indisciplinada e politizada. Durante a crise, o então governador Camilo Santana (PT) foi coagido pessoalmente por 3 ministros militares do governo Bolsonaro, que exigiam anistia aos policiais amotinados, reforçando o ambiente de tensão institucional.
No plano federal, a PEC da Segurança Pública, proposta pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, busca consolidar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criando diretrizes nacionais para a atuação policial. A medida gerou reações mistas. Governadores, incluindo Tarcísio de Freitas, expressaram receios de centralização excessiva, enquanto o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, parece ter encontrado em suas críticas à proposta uma vocação para a literatura distópica: suas falas apocalípticas sobre "afronta aos estados" e "dissimulação federal" seriam um excelente ponto de partida para um livro sobre um futuro fictício, onde a autonomia de um bravo governador de um estado sem crimes seria a última barreira contra um governo centralizador que ousa querer coordenar ações de segurança pública. Se Heinlein usou o militarismo para refletir sobre sociedade e política, quem sabe Caiado não faça o mesmo com a fantasia que criou sobre seu estado? Afinal, entre críticas delirante e a fina ironia do presidente Lula, a PEC da Segurança Pública se mostrou uma tentativa honesta de impedir que o caos policial continue escrevendo seus próprios capítulos.
O Brasil vive um paradoxo em que o próprio Estado, aquele acusado por Caiado de querer controlá-lo, se encontra refém das forças de segurança pública, sobretudo as Forças Armadas. A Operação Contragolpe, da Polícia Federal, que revelou como setores das Forças Armadas se envolveram em tentativas de desestabilizar o processo democrático, seja na organização de atos golpistas ou na omissão frente a ataques às instituições, não só expôs a complacência de décadas, mas também a crescente dificuldade do atual governo em impor limites claros às ações militares.
O episódio mais simbólico dessa postura foi o recente vídeo divulgado pela Marinha, que insinuou seu poder em relação ao governo civil, além de chamar a todos nós de fanfarrões. Sobre essa afronta sugiro o excelente artigo de Jeferson Miola, que evidencia em números o que eu ja disse em desabafo: privilegiados são eles. Esse episódio, junto com a incapacidade de destituir completamente os resquícios de militarização no Estado, evidencia como o Brasil ainda não superou sua herança autoritária. Enquanto as Forças Armadas mantiverem esse grau de influência, o Estado continuará dividido entre os interesses democráticos e as pressões de uma instituição que deveria estar subordinada à soberania popular. A sensação de impunidade daqueles que usam farda e o enfraquecimento do controle civil sobre essas instituições criam um efeito dominó que atinge dos kids pretos ao PM de Camaragibe (PE), que assassinou um motociclista de aplicativo com tiro no meio da rua por discordar do valor de uma corrida.
A autonomia das forças de segurança foi potencializada pelos governos de Michel Temer (MBD) e Jair Bolsonaro (PL), que militarizaram amplamente a administração pública. Sob Bolsonaro, especialmente, o número de militares em cargos de confiança explodiu, reforçando a influência política das Forças Armadas e dificultando a distinção entre suas funções constitucionais e sua participação no governo. Esse processo não apenas comprometeu a profissionalização da gestão pública, mas também piorou e muito um ambiente em que os militares se veem como agentes políticos, capazes de tomar posições que frequentemente desafiam as instituições civis que deveriam servir.
De São Paulo à Bahia, passando pelo Ceará, a violência policial mostra que o desafio de equilibrar segurança pública e democracia não se limita a espectros políticos ou regiões. A PEC da Segurança Pública surge como uma oportunidade para reformar a governança democrática e responsabilizar abusos, mas seu sucesso dependerá de compromissos reais com transparência. Como em Tropas Estelares, a lição é clara: sociedades que priorizam o poder militar em detrimento da justiça e do controle democrático correm o risco de se afastar de seus valores fundamentais. O Brasil deve decidir se fortalecerá suas instituições ou continuará refém de políticas que perpetuam a violência.
Sara Goes
Sara Goes é âncora da TV247, comunicadora e nordestina antes de brasileira
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