“Viva o povo brasileiro!”

É pela cultura que haveremos de poder orgulhosamente emprestar o título do também imortal João Ubaldo Ribeiro para um sonoro brado, retumbante como aquele ouvido às margens plácidas do Ipiranga

Andrey Cavalcante
Publicada em 12 de abril de 2022 às 11:25
“Viva o povo brasileiro!”

“Eu mesmo, nos meus tempos de aventuras, / cheguei a envergar um garboso fardão, / vestido então como ironia dura, / a fantasia pura da ilusão! / juntava-me, naquele instante, aos muitos / que alfinetavam a Instituição / mal sabia eu quais os intuitos, / do destino astuto a interrogação. Um amigo lembrou-me outro dia / que as ironias sempre trazem seu revés / papéis trocados, eis aqui, vida vadia: / fardão custoso, bordado a ouro, vistoso, / me revestindo da cabeça aos pés” (Gilberto Gil, músico, cantor e compositor, em poema lido no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras, para lembrar que já ironizou, em disco, o fardão que agora usa como imortal). 

Após tornar imortal a magistral atriz Fernanda Montenegro – única brasileira indicada ao Oscar de Melhor Atriz, pela atuação em Central do Brasil -, já imortalizada, aliás, pelo conjunto da obra, a ABL acerta mais uma, ao empossar Gilberto Gil, outro expoente da cultura internacionalmente reconhecido, na “Cadeira 20”, antes ocupada por Murilo Melo Filho. A eleição de Gil requentou a polêmica inaugurada por Joaquim Nabuco e Machado de Assis, o primeiro a favor e o outro contra a adoção de um conceito mais amplo de 'humanidades', em que as letras não tivessem exclusividade. O debate não tem o menor sentido. Ou a Academia não poderia ter acomodado nomes como Oswaldo Cruz, Santos Dumont e Barão do Rio Branco. 

Ademais, a ABL, com Gilberto Gil e Fernanda Montenegro, trilha o caminho correto, da dessacralização da cultura e da sua necessária democratização. Milhões de brasileiros só têm contato com um livro através da Bíblia. Mas grande parte desses se comoveu com a atuação de Dora, personagem de Fernanda, que escrevia cartas na Estação da Central. Não deixa de ser o caminho apontado por Darcy Ribeiro: “A cultura não deve ser encarada apenas como sinônimo de erudição, mas como experiência que pode ser vivida em diferentes dimensões – ética, política e econômica. Uma criação cultural que favoreça a ligação entre cultura e justiça social, transformadora e libertária”. 

Gilberto Gil registrou isso em seu discurso de posse, ao assinalar que “Entre tantas honrarias que a vida generosamente me proporcionou, essa tem para mim uma dimensão especial, não só porque aqui é a casa de Machado de Assis, um escritor universal, afrodescendente como eu, mas também porque a ABL, fundada em 20 de julho de 1897, representa, mesmo para quem a critica, a instância maior que legitima e consagra, de forma perene, a atividade de um escritor ou criador cultural em nosso país.

- "A Academia Brasileira de Letras é a Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática. Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora, uma questão que merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, aqui, efetivamente, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça”.

O Brasil precisa disso. Precisa de mais esperança, mais poesia, mais amor, alegria e fé. Que o país tenha consciência de que o que falta por aqui de cultura erudita abunda em cultura popular. É por aí que realidade e ficção se misturam na trama da cultura nacional, na criação de épicos com passagens heróicas e cômicas, com pano de fundo em momentos decisivos para a história do país. É daí que personagens deixam escapar traços da personalidade do autor. Que Macunaíma mostra sua porção Mário de Andrade para aprender “o brasileiro falado e o português escrito” – um dos suportes do movimento modernista de 1922. 

Que sente a angústia de Caetano Veloso ao compor “London London” no exílio, para enaltecer a liberdade nas ruas da capital inglesa, mas registrar a queixa por estar “solitário em Londres sem medo / andando em círculos aqui, sem rumo”. Que aplaude a monumental irreverência de Nélson Rodrigues em “A Vida Como Ela É”, ou em “Beijo no Asfalto”, uma de suas peças mais aclamadas, escrita para Fernanda Montenegro. É pela cultura que haveremos de poder orgulhosamente emprestar o título do também imortal João Ubaldo Ribeiro para um sonoro brado, retumbante como aquele ouvido às margens plácidas do Ipiranga: Viva o Povo Brasileiro!”

(*) Andrey Cavalcante é ex-presidente e membro honorário vitalício da OAB Rondônia

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