A palavra do músico: streaming e a decisão do STJ sobre direitos autorais
Em um mercado inteiramente afetado pela revolução dos bits, as próprias formas de comercialização da música – e, por extensão, de remuneração e proteção intelectual dos artistas – foram alvo de diversos embates judiciais em todo o mundo.
Raffa Santoro: ambiente digital não trouxe grandes mudanças na distribuição dos direitos autorais
Ao mesmo tempo em que se transportava da música clássica para o rap, o DJ e produtor musical Cláudio Raffaello Santoro, ou apenas DJ Raffa Santoro, acompanhava o mercado musical analógico caminhar em direção ao ambiente virtual. Das agulhas nos discos de vinil aos cliques em plataformas musicais na internet, o músico, filho do maestro Claudio Santoro, construiu uma carreira de 30 anos em que já assinou a produção de 130 discos, quatro deles premiados como discos de ouro.
O sucesso como um artista multifacetado – além do rap e da música eletrônica, o DJ já produziu até trilhas sonoras para filmes – não significa, todavia, expressivo retorno financeiro. No mercado musical, os valores recebidos pelo artista provêm de várias fontes, como a venda de discos, shows e os direitos autorais, estes últimos conferidos ao criador da obra intelectual para que ele possa usufruir dos benefícios resultantes da exploração de sua criação.
No Brasil, os direitos autorais são regulamentados principalmente pela Lei 9.610/98, queestabelece parâmetros como a proteção aos direitos morais e patrimoniais, direitos pela execução pública de obras musicais e as formas de arrecadação e distribuição dos direitos autorais – em geral realizadas pelos órgãos de intermediação, como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).
Tudo na mesma
Quando o mundo era analógico, Raffa Santoro lembra que, no caso de execuções musicais públicas como nas rádios, em geral, os artistas precisavam que o Ecad visitasse as emissoras, checasse a programação (que era toda escrita, em papel) e fizesse a arrecadação dos direitos.
A partir do momento em que as plataformas de música se tornaram digitais, segundo o DJ, os artistas imaginaram que o mecanismo de distribuição se tornaria mais fácil, mas o processo continua sendo um desafio, especialmente para os chamados artistas independentes, que não têm a retaguarda de grandes gravadoras.
“E nesse ambiente digital, praticamente ficou a mesma coisa. Por exemplo, todo dia as plataformas mudam um pouco o processo para que eles não distribuam tanto o dinheiro, ou te paguem uma quantia muito ínfima”, afirma o produtor musical.
A era pós-Napster
Em um mercado inteiramente afetado pela revolução dos bits, as próprias formas de comercialização da música – e, por extensão, de remuneração e proteção intelectual dos artistas – foram alvo de diversos embates judiciais em todo o mundo.
Raffa Santoro lembra um dos conflitos mais importantes, no início dos anos 2000, quando o Napster, serviço de compartilhamento de músicas por download, protagonizou a primeira grande disputa entre uma plataforma web e a indústria fonográfica. O serviço foi encerrado em 2001, após ter sido processado por promover pirataria e violar arquivos de áudio protegidos por direito autoral. Posteriormente, o lançamento de serviços de streaming por assinatura, como o Spotify e o Deezer, diminuiu o índice de downloads ilegais, mas não encerrou as discussões sobre direitos autorais.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), um dos julgamentos mais importantes relacionados à indústria musical e aos direitos autorais ocorreu em 2017, quando a Segunda Seção decidiu que é legítima a arrecadação dos direitos autorais pelo Ecad nas transmissões musicais pela internet, via streaming.
Em recurso especial do Ecad contra a Rádio Oi FM, os ministros discutiram se a reprodução de músicas on-line poderia ser enquadrada no conceito de execução pública estabelecido na Lei de Direitos Autorais. Na ação, a Oi alegava que já pagava direitos autorais à entidade de arrecadação em virtude da transmissão radiofônica e, por isso, um novo pagamento pela retransmissão do conteúdo na internet seria indevido.
Conceito ampliado
Segundo o relator do caso, ministro Villas Bôas Cueva, no contexto da sociedade da informação, o conceito de público não poderia mais ser restringido, como na era analógica, a um conjunto de pessoas que se reúnem e que têm acesso à obra ao mesmo tempo. Para o ministro, público também é a pessoa que está sozinha, mesmo em casa, e que faz uso da obra quando quiser. “Isso porque o fato de a obra intelectual estar à disposição, ao alcance do público, no ambiente coletivo da internet, por si só, é capaz de tornar a execução musical pública”, afirmou.
De acordo com o relator, independentemente de interatividade entre o usuário e a plataforma digital, da simultaneidade na recepção do conteúdo ou da pluralidade de pessoas, a internet caracteriza-se como um local de frequência coletiva e, por isso, a transmissão via streaming torna legítima a arrecadação e distribuição dos direitos autorais pelo Ecad.
“Nesse cenário, a compreensão de que o streaming é hipótese de execução pública passível de cobrança pelo Ecad prestigia, incentiva e protege os atores centrais da indústria da música: os autores”, apontou Villas Bôas Cueva.
Desequilíbrio
Para o DJ Raffa Santoro, a decisão do STJ é importante em um mercado no qual ainda prevalece o desequilíbrio entre as gravadoras, as distribuidoras de conteúdo e os artistas. Como produtor de diversos músicos e grupos do Distrito Federal, ele lembra que muitos artistas têm uma parte importante de seus rendimentos ligada à exposição via internet, mas raramente a relação entre o número de visualizações e o recebimento dos direitos autorais é proporcional.
“Menos de 30% de tudo o que é arrecadado na comercialização de músicas em ambiente on-linefica com os próprios músicos. Mais de 70% é destinado às distribuidoras digitais, às gravadoras”, aponta o produtor musical.
Segundo Raffa Santoro, além de mecanismos de aprimoramento da legislação e do processo da arrecadação e distribuição dos direitos autorais, também é necessário que os próprios músicos busquem o registro nas associações de proteção aos direitos autorais.
“Não adianta nada colocar tudo nas plataformas digitais e não preencher toda a parte de direitos autorais ou não mandar para a associação, para que ela tenha todo esse registro para saber que aquele produto é seu e os direitos precisam ser recolhidos, tanto digitalmente quanto por outras formas de vendagem”, afirma o DJ.
A série 30 anos, 30 histórias apresenta reportagens especiais sobre pessoas que, por diferentes razões, têm suas vidas entrelaçadas com a história de três décadas do Superior Tribunal de Justiça. Os textos são publicados nos fins de semana.
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