A Revisão do Marco Regulatório da Geração Distribuída
No modelo regulatório atualmente vigente, o valor integral da tarifa de energia cobrada pela distribuidora de energia é compensado pelo valor da energia gerada por geração distribuída, o que leva a uma discussão sobre qual deveria ser a forma correta de se remunerar a energia injetada.
A Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL publicou em 2012 a Resolução Normativa – REN no 482, que tinha o objetivo de criar condições regulatórias para o fomento e viabilização da microgeração e minigeração distribuídas (“geração distribuída”).
Para tanto, a regulação da ANEEL criou o chamado “Sistema de Compensação de Energia Elétrica”, pelo qual o excedente de energia gerado por uma unidade consumidora com geração distribuída é injetado na rede da distribuidora local e, posteriormente, utilizado para compensar o consumo de energia desse consumidor. Ou seja, por esse sistema, o valor da energia injetada na rede da distribuidora pelos consumidores com geração distribuída serve para abater o valor do consumo de energia desses consumidores junto àquela distribuidora.
No modelo regulatório atualmente vigente, o valor integral da tarifa de energia cobrada pela distribuidora de energia é compensado pelo valor da energia gerada por geração distribuída, o que leva a uma discussão sobre qual deveria ser a forma correta de se remunerar a energia injetada por esta modalidade na rede da distribuidora.
De um lado, alega-se que o sistema atual não remunera adequadamente as distribuidoras de energia elétrica pela utilização de sua rede, o que provocaria um subsídio cruzado da parte dos demais consumidores àqueles com geração distribuída. De outro, alega-se que o desenvolvimento da geração distribuída vem gerando inúmeros benefícios econômicos e sociais – dentre os quais se destacam: (i) grandes investimentos durante a grave recessão econômica vivida pelo país; (ii) geração de empregos; e, (iii) a redução do impacto ambiental para a produção de energia, o que é particularmente verdade no caso da geração fotovoltaica, matriz energética que mais se beneficiou dos incentivos concedidos para geração distribuída –, de forma que a divisão com os demais usuários de eventuais custos associados à má remuneração pelo uso da rede das distribuidoras por parte dos consumidores com geração distribuída seriam justificáveis sob a premissa regulatória, ao menos até que esse mercado possa se consolidar.
Prevendo a possibilidade de tais discussões, quando da revisão regulatória promovida pela REN nº 687/2015, a ANEEL previu a necessidade de reavaliação do marco regulatório focada nos aspectos econômicos do Sistema de Compensação de Energia Elétrica a ser realizada até 31/12/2019. Assim, foi que no primeiro semestre de 2018, a ANEEL lançou a Consulta Pública – CP nº 10/2018, que deu origem ao Relatório de Avaliação de Impacto Regulatório – AIR nº 04/2018, submetido pelo órgão regulador à Audiência Pública – AP nº 01/2019, que se encerra neste 19/04.
O AIR nº 04/2018 propõe, em síntese, que tanto a geração distribuída para compensação local (“geração distribuída local”) – aquela em que toda a energia gerada é consumida localmente –, quanto para a geração distribuída para compensação remota (“geração distribuída remota”) – aquela em que a energia gerada é compensada em outras unidades daquele consumidor dentro da mesma rede de distribuição –, os consumidores que contratarem a conexão com a rede de distribuição até o fim de 2019 gozariam dos benefícios da regulação atual por um período de 25 anos contados da sua conexão.
Ainda no caso da geração distribuída local, os consumidores que se conectarem à rede de distribuição entre o início de 2020 e o momento em que se atinja um gatilho no país de um total de 3,365 GW instalados de geração distribuída local, estarão sujeitos à regulação atual pelo período de 10 anos contados de sua conexão à rede. Depois desse período, a energia injetada na rede será compensada integralmente à exceção dos valores referentes à Tarifa do Uso do Sistema de Distribuição – TUSD Fio B. Por fim, os consumidores que contratarem a geração distribuída local após o gatilho, terão direito à compensação integral do valor da energia injetada na rede de distribuição, exceto pelos valores referentes à TUSD Fio B.
Em relação à geração distribuída remota, existirão dois gatilhos: o primeiro, quando se atingir a marca de 1,25GW instalados no país e o segundo quando se chegar a 2,13 GW instalados. Assim, consumidores que instalarem geração distribuída remota entre 2020 e o primeiro gatilho serão remunerados pelo sistema atual nos primeiros 10 anos a partir de sua conexão, passando à compensação do valor integral da energia injetada, exceto pelos valores referentes à TUSD Fio A e TUSD Fio B nos outros 15 anos. Os consumidores que contratarem entre o primeiro e o segundo gatilho terão direito a 10 anos de compensação do valor total da energia, exceto pelos valores referentes à TUSD Fio B, passando à compensação pelo valor integral, exceto TUSD Fio A e Fio B. Por fim, os consumidores que contratarem após o segundo gatilho serão compensados durante os 25 anos pelo valor total da energia, exceto TUSD Fio A e Fio B.
Com essas alterações, a ANEEL espera atingir 39 GW de geração distribuída instalada em 2035 (22 GW de remota e 17 GW de local), com uma redução do valor total do subsídio cruzado estimado somado da ordem de R$ 72 bilhões até 2035, passando para R$ 3 bilhões para a geração distribuída remota, enquanto a geração distribuída local seria superavitária em aproximadamente R$ 6,9 bilhões.
O AIR nº 04/2018 sugere por fim a necessidade de inclusão na revisão regulatória de cinco pontos: i) a melhor distribuição dos custos associados à conexão da geração distribuída remota; ii) a revisão do conceito de cogeração qualificada para a geração distribuída a partir da matriz térmica; iii) possibilidade de comercialização do excedente de geração pelo sistema de net metering ao mercado livre; iv) estabelecimento de critérios mais rígidos para identificação de divisão de plantas para sua qualificação dentro dos limites de geração distribuída; e, v) possibilidade de alocação de créditos de um mesmo consumidor em redes distribuidoras diversas daquelas em que a geração distribuída está conectada.
Como se percebe, a revisão regulatória proposta altera significativamente os incentivos econômicos para a geração distribuída a partir do ano de 2020. Na prática, a publicação do AIR nº 04/2018 gerou uma ebulição no mercado, com instaladores e consumidores ávidos por concluírem suas contratações dentro do período sujeito à regulação atual, fazendo com que se estime que as contratações realizadas em 2019 possam dobrar o volume de geração distribuída atualmente instalada no país. Naturalmente, essa corrida ao ouro gera questionamentos sobre se haverá capacidade técnica e econômica da indústria em toda a demanda em tão curto prazo, bem como se essa demanda não estaria gerando um aumento de custos que compensariam os benefícios obtidos.
Além disso, a forma superficial com que aspectos relevantes como a conexão à rede das distribuidoras – que vem sendo apontada como um dos principais gargalos da geração distribuída - aliada ao fato de que servidores da própria ANEEL reconheceram mais de uma vez durante as audiências públicas realizadas, que o valor presente líquido da energia gerada por geração distribuída utilizado como premissa para o estudo estava superestimado têm gerado grandes preocupações em todos os interessados no assunto sobre a correção do modelo regulatório que será adotado a partir de 2020.
Por esses motivos, neste momento, parece ganhar peso a parcela dos interessados que sustenta a necessidade de um maior aprofundamento dos estudos por parte da ANEEL antes que se modifique o sistema regulatório atualmente vigente para a geração distribuída.
Sob a perspectiva da melhor técnica regulatória, é evidente que, comprováveis os benefícios econômicos e sociais decorrentes a geração distribuída (enquanto não sejam devidamente apurados os prejuízos econômicos dela potencialmente derivados), a recomendação é para que sejam aprofundados os estudos, dando nova oportunidade para que a comunidade interessada no tema contribua sobre uma base teórica mais sólida, o que permitirá que se chegue à melhor escolha para os interesses coletivos e individuais que serão afetados.
Tiago Gomes é advogado, mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo e sócio de Ambiel, Manssur, Belfiore & Malta Advogados.
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