Dos campos aos tribunais: o futebol sob a ótica do STJ
Desde que aportou no Brasil, em 1895, o futebol se tornou parte indissociável da vida nacional e, há muito tempo, deixou de ser uma mera prática esportiva: a bola invadiu o cotidiano.
Nos campos improvisados onde se joga com os pés descalços, nas tatuagens que demonstram amor eterno pelo clube, na alegria explosiva ou na tristeza inconsolável após um jogo – a relação do povo brasileiro com o futebol é expressada de muitas formas, nem todas racionais ou lógicas.
Desde que aportou no Brasil, em 1895, o futebol se tornou parte indissociável da vida nacional e, há muito tempo, deixou de ser uma mera prática esportiva: a bola invadiu o cotidiano. Na nação do futebol, heróis da bola se transformam em agentes políticos, bebês são batizados como Romários, Ronaldos, e até mesmo uma lei foi apelidada com o nome do maior jogador da história: Pelé.
De quatro em quatro anos, a rotina do país é completamente alterada, e os brasileiros se unem em torno do maior torneio de futebol do planeta: a Copa do Mundo, que em 2018 será realizada na Rússia a partir do dia 14 de junho. É o período que em que as ruas ganham tintas verdes e amarelas, os carros são enfeitados com bandeirolas e as reuniões mais importantes são marcadas em frente à televisão.
Em um país onde o futebol é religião, cultura e paixão, o mundo da bola também não deixaria de ser uma questão de Justiça. Quando as disputas são mais sérias do que aquelas que animam as rodas de amigos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) participa da resolução de conflitos relacionados ao esporte mais amado do país, em casos que vão desde direitos de imagens em álbuns de figurinhas até indenização por erros de arbitragem.
Nas arquibancadas
Jogo de campeonato, 46 minutos do segundo tempo. A partida está 0 x 0 e seu time precisa da vitória para obter a classificação no torneio. Pouco antes do apito final, um jogador do seu time é derrubado na área adversária e o árbitro não marca pênalti, encerrando a partida e causando revolta nos torcedores. Posteriormente, o próprio árbitro reconhece o erro de marcação. Um caso típico de ira da torcida – mas seria uma hipótese de ressarcimento dos torcedores por danos morais?
A situação foi analisada pela Quarta Turma em 2013, ao julgar recurso especial em que um torcedor do Atlético Mineiro alegou ter sofrido prejuízos em virtude da não marcação de uma penalidade contra o Botafogo, durante confronto pela Copa do Brasil de 2007. Sob argumentos como a caracterização do torcedor como consumidor e a falha do serviço prestado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o autor da ação pedia indenização de 60 salários mínimos a título de danos morais.
Apesar de reconhecer a equiparação dos torcedores aos consumidores, nos termos do Estatuto do Torcedor, o ministro Luis Felipe Salomão destacou que o caso em exame tinha relação com erro de arbitragem, ou seja, com equívoco não intencional. “Não há legítima expectativa – amparada pelo direito – de que o espetáculo esportivo possa transcorrer sem que ocorra erro de arbitragem”, afirmou o relator.
Segundo o ministro, na hipótese analisada, não se poderia falar em ocorrência de ato ilícito, nem ficou demonstrado nexo de causalidade entre a ação e o suposto dano moral. Além disso, a conversão do pênalti em gol era fato incerto, e a penalidade poderia não ter sido marcada mesmo se fosse outro o árbitro do jogo.
“A derrota de time, ainda que atribuída a erro grosseiro de arbitragem, é mero dissabor que também não tem o condão de causar mágoa duradoura, a ponto de interferir intensamente no bem-estar do torcedor, sendo recorrente em todas as modalidades de esporte que contam com equipes competitivas” afirmou o ministro ao negar o pedido de indenização.
No banco
Frequentemente convertidos de heróis a vilões ou vice-versa – e às vezes em um curto intervalo de tempo –, os treinadores de futebol são os responsáveis por transformar um simples agregado de jogadores em um verdadeiro grupo de nível competitivo. Para isso, são empregados treinos físicos e técnicos, múltiplos desenhos táticos e avaliações anteriores e posteriores aos jogos – tudo, é claro, acompanhado de perto por torcedores, imprensa e diretoria.
No caso da Seleção Brasileira, dizem, o número de “treinadores” ultrapassa os 200 milhões – cada um com sua própria escalação, método tático e craques favoritos.
Para lidar com tanta pressão, são exigidos do treinador enorme capacidade de controle psicológico, bom conhecimento das regras do esporte e, muitas vezes, até alguma experiência dentro de campo. O que não pode ser exigido é o diploma do curso de educação física, conforme decidiu a Segunda Turma em 2017 ao julgar recurso do Conselho Regional de Educação Física de São Paulo, que buscava a inclusão da profissão de treinador de futebol entre as atividades privativas dos profissionais de educação física.
No caso analisado, o colegiado entendeu que não há previsão legal para a restrição de acesso às funções de treinamento futebolístico apenas a profissionais diplomados, nem mesmo na Lei 8.650/93, que regulamenta as atividades dos técnicos.
O ministro relator, Herman Benjamin, lembrou julgamentos do STJ que estabeleceram anteriormente que a expressão “preferencialmente”, constante do artigo 3º da Lei 8.650/93, apenas confere prioridade aos diplomados em educação física para o exercício da atividade. Dessa forma, a profissão não está proibida aos não diplomados.
“O STJ possui jurisprudência firme e consolidada no sentido de que os artigos 2º, III, e 3º da Lei 9.696/98 e 3º, I, da Lei 8.650/93 não trazem nenhum comando normativo que determine a inscrição de treinadores/técnicos de futebol nos Conselhos Regionais de Educação Física”, concluiu o ministro ao descartar a exigência do diploma.
Nas bancas
Especialmente às vésperas da Copa do Mundo, torcedores de vários países, de todas as idades, participam de um torneio particular que consiste em correr às bancas de jornais, comprar pacotes de figurinhas e organizar o álbum da competição. Ansiosos por completar seus álbuns também por meio de trocas e revendas, fãs dão seriedade a uma brincadeira que forma colecionadores há muitas gerações.
Ao colar cuidadosamente uma nova figurinha em seu espaço no papel, muitos colecionadores talvez não conheçam a logística por trás da produção de álbuns esportivos. No caso do futebol, entre outros procedimentos, as editoras precisam negociar os direitos de imagem dos jogadores, em transação realizada com as federações ou, como no caso do Brasil, diretamente com os esportistas.
A exposição não autorizada de jogador em álbum de figurinhas pode acarretar indenização por danos morais, como ocorreu em 2011 com o ex-atleta Paulo Cezar Tosim, que teve reconhecido o direito de ressarcimento por dano moral no valor de R$ 10 mil em virtude da veiculação de sua imagem em álbum do Campeonato Brasileiro. A decisão monocrática foi proferida pelo desembargador convocado Vasco Della Giustina.
Em casos mais recentes relacionados à divulgação não autorizada da imagem dos jogadores em álbuns, o STJ atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para julgamento do pedido de indenização. Esse foi o entendimento da Segunda Seção em 2018, ao analisar conflito de competência que envolvia ação de ressarcimento do ex-goleiro Ademir Maria contra a Editora Panini, também por causa da suposta utilização indevida de sua imagem em publicação do campeonato nacional.
No caso analisado, o relator do conflito, ministro Raul Araújo, destacou que os times trazidos ao processo pela editora – o Internacional e o Grêmio de Porto Alegre – alegaram que, na qualidade de atleta profissional, o goleiro conferiu aos times empregadores o direito de utilização de sua imagem.
“A análise do pleito indenizatório formulado contra a editora depende direta e precipuamente do exame de eventual autorização conferida pelo jogador aos clubes empregadores para a exploração de imagem no curso da relação de trabalho existente entre ambos, circunstância que em tudo recomenda a apreciação da questão pela Justiça do Trabalho”, apontou o ministro relator.
Na Copa
Entre os sonhos de dez em cada dez fanáticos por futebol, está o de acompanhar um jogo de Copa do Mundo diretamente no estádio. No último torneio, realizado no Brasil em 2014, muitos torcedores conseguiram concretizar esse desejo em seu próprio país; outros unem a expectativa pelas partidas ao prazer de viajar, adquirindo pacotes internacionais que incluem, além de roteiros turísticos, um ou mais bilhetes para os jogos.
Férias, viagem e futebol: uma visão de sonhos caso a empresa de turismo não frustre as expectativas dos torcedores ao não reservar hotéis e não disponibilizar os ingressos. A situação ocorreu em 1998 com um grupo de quatro torcedores que compraram pacotes para acompanhar o torneio internacional, realizado na França naquele ano.
Segundo os consumidores, ao contrário do que foi contratado com a operadora de turismo, eles não receberam os ingressos para ver a Seleção Brasileira no jogo de abertura da Copa. Além disso, os torcedores não puderam conhecer as cidades turísticas francesas que haviam escolhido no roteiro original – foram deslocados para outras cidades pela agência – e ainda tiveram de arcar com diárias de hotéis devido à falta de pagamento antecipado pela operadora.
O processo foi julgado pelo STJ em 2011, quando foi fixada indenização por danos morais de R$ 20 mil para cada um dos torcedores. Para o relator do recurso especial, ministro Raul Araújo, houve graves defeitos na prestação de serviço pela agência de turismo, que foi considerada responsável pela sucessão de falhas na administração do roteiro.
“Com efeito, a perda do jogo inaugural da seleção de futebol do Brasil na Copa do Mundo de 1998, a mudança unilateral de roteiro, com troca de cidades, a hospedagem em hotéis de categoria inferior aos contratados, sendo os autores acomodados em hotéis de estrada, são circunstâncias que evidenciam a má prestação do serviço, em desconformidade com o que foi contratado, situações essas que, no somatório, não se restringem a um simples aborrecimento de viagem, configurando, sim, um abalo psicológico ensejador do dano moral”, apontou o ministro.
No sol
Os jogos realizados durante a semana costumam ocorrer à noite, mas, aos finais de semana, são marcados para o horário vespertino ou até mesmo durante a manhã. Nos dias de sol, para a torcida, óculos e bonés são companheiros indispensáveis; para os jogadores, porém, esses acessórios de proteção não estão disponíveis, e o calor pode se transformar em perigo à saúde.
A situação foi discutida em 2008 por meio de mandado de injunção proposto pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol. Segundo a entidade, em virtude da ausência de norma regulamentadora específica do Ministério do Trabalho e do Emprego sobre a realização de partidas de futebol, muitos atletas eram obrigados a jogar em horários de calor intenso, principalmente no período do horário de verão brasileiro, o que trazia risco à saúde e à vida desses jogadores.
A relatora do mandado de injunção, ministra Laurita Vaz, destacou que o artigo 34 da Lei Pelé estabelece como dever das entidades de prática desportiva proporcionar aos atletas as condições necessárias à participação nas competições, além da submissão dos jogadores a exames médicos e clínicos. A ministra também lembrou que a Portaria MTB 3.214/78 possui dispositivos sobre os limites de tolerância para exposição ao calor, aplicável para os trabalhadores de modo geral, inclusive os atletas.
“Assim, não há falar em ausência de norma, mas em mero descontentamento da federação impetrante com as que existem, o que não enseja a abertura da presente via, porque não está inviabilizado o exercício do direito arguido. Na realidade, tem-se evidenciada a falta de pressuposto específico do mandado de injunção”, apontou a ministra ao rejeitar a pretensão da entidade esportiva.
O mandado de injunção deve ser concedido pela Justiça, segundo a Constituição Federal, quando a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais.
Nos tribunais
Para que não se discuta a seriedade do esporte, a Constituição Federal previu, em seu artigo 217, a atuação da Justiça Desportiva, entidade de âmbito privado apta a analisar questões a respeito do regramento e da disciplina nas diversas modalidades esportivas.
De acordo com o texto constitucional, o envolvimento do Poder Judiciário só é admitido depois de esgotadas todas as instâncias da Justiça Desportiva. A última delas é um quase-xará do STJ: o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), entidade máxima do esporte no Brasil.
Em 2013, em virtude da escalação irregular de jogadores no Campeonato Brasileiro daquele ano, o STJD determinou a aplicação da pena de perda de quatro pontos ao Flamengo e à Portuguesa. No caso do clube paulista, a penalidade resultou em seu rebaixamento para a segunda divisão da competição nacional.
Após a decisão da corte esportiva, torcedores, associações e os próprios times ajuizaram ações na Justiça comum de vários estados com o objetivo ou de anular o julgamento do STJD ou de manter a decisão e o resultado final do campeonato. Por isso, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) suscitou conflito de competência perante o Superior Tribunal de Justiça.
O caso foi analisado pela Segunda Seção sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 794). De acordo com o ministro aposentado Sidnei Beneti, considerando que a CBF é parte necessária nos processos que questionam decisões da Justiça Desportiva – organizada pela confederação –, as ações devem ser propostas no foro onde está localizada a sede da pessoa jurídica, conforme previa o artigo 100 do Código de Processo Civil de 1973. Segundo o ministro, neste caso, a competência tinha relação com o interesse público e a necessidade de se evitar a possibilidade de decisões contraditórias por diferentes juízos.
“É competente o juízo do local em que situada a sede da entidade organizadora de campeonato esportivo de caráter nacional para todos os processos de ações ajuizadas em vários juízos e juizados especiais, situados em lugares diversos do país, questionando a mesma matéria central, relativa à validade e à execução de decisões da Justiça Desportiva, visto que a entidade esportiva de caráter nacional, responsável, individual ou conjuntamente com quaisquer outras entidades, pela organização (no caso, a CBF), deve, necessariamente, inclusive por decisão de ofício, integrar o polo passivo das demandas”, concluiu o ministro Beneti ao fixar a competência do foro da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Nos títulos
Contratação de jogadores, escolha de técnico, treinos até que se chegue ao “time ideal”. Todo o esforço dos times de futebol tem, no fundo, um grande e principal objetivo: erguer a taça e soltar o grito de campeão. É momento de ápice para qualquer jogador e torcedor e, esperamos, pode ser novamente vivido pelos brasileiros em 2018 pela sexta vez.
Após celebrar um título, nenhum torcedor espera ter que discutir a conquista do campeonato em outra arena – a judicial. Mas, durante décadas, os adeptos do Sport Club do Recife assistiram a uma disputa judicial do seu time contra o Club de Regatas Flamengo sobre qual dos dois seria o campeão brasileiro de 1987. No âmbito do STJ, a questão foi resolvida em favor do Sport – posteriormente, o Supremo Tribunal Federal confirmou o julgamento.
O caso, analisado em 2014 pela Terceira Turma, discutia o aparente conflito entre sentença proferida em 1994 que reconheceu o Sport como o campeão brasileiro de 87 e resolução da CBF que declarava o time pernambucano como “um dos campeões”, ao lado do Flamengo.
Para o relator do recurso, ministro Sidnei Beneti, tendo em vista o julgamento de mérito pela Justiça comum, seria inadmissível a revisão posterior do resultado do campeonato pela CBF. Segundo o relator, também não se poderia imaginar que a sentença contivesse autorização para que a entidade “completasse” o resultado do campeonato, declarando dois campeões em vez de apenas um. “Ademais, se fosse para haver dois ou mais campeões da competição, o Estatuto do Campeonato Brasileiro tinha de havê-lo assim regulamentado de forma expressa, porque isso seria contrário à normalidade dos campeonatos em geral, da mesma forma que o julgado transitado em julgado, por sua vez, tinha de havê-lo também expressamente declarado – o que jamais ocorreu antes da resolução pela qual se descumpriu a coisa julgada”, apontou o ministro à época.
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