Estômago do governo Bolsonaro era um estado paralelo
"O projeto de Bolsonaro vai superar o número de 'arapongas' convocados na ditadura", escreve Denise Assis
Jair Bolsonaro e Abin (Foto: Marcos Correa/PR | Reprodução)
As notícias sobre a arapongagem, pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), de mais de 30 mil pessoas dos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira, que veio à torna na sexta-feira (20/10) tem sido veiculada com o adendo: o programa foi adquirido no final do governo de Michel Temer. Foi, mas resta esclarecer – a PF está elucidando esse ponto com investigações –, se foi adquirido com a anuência do chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI), Sergio Etchegoyen, então um general da ativa. Não por acaso o Exército também comprou uma versão do Firstmile, segundo consta no noticiário.
Na sexta-feira, a PF deflagrou a Operação Última Milha, a fim de investigar a utilização indevida, por servidores da Abin, do sistema de geolocalização de dispositivos móveis sem autorização judicial. Um dos presos é Rodrigo Colli, profissional. O outro é o oficial de inteligência Eduardo Arthur Izycki. Uma excrecência, digna dos piores anos de vigência da ditadura (1964/1985).
Etchegoyen, primo de D. Cidinha, mulher do general Villas Bôas (então comandante do Exército), foi um dos articuladores do golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff. Como prêmio, foi alçado ao cargo, no mandato tampão de Michel, na expectativa de que este saísse candidato com as bênçãos do Exército Brasileiro, para a eleições de 2018. Por isso era tão importante manter Luiz Inácio Lula da Silva longe da possibilidade de ter o seu nome nas urnas e daí o tuíte de Villas Bôas, que o tirou do páreo.
Desde 2015, na reforma administrativa empreendida pela presidente Dilma, a Abin passou a se reportar à Secretaria de Governo. Com o seu afastamento e a subida do então vice-presidente, Michel Temer, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) foi recriado e a Agência ficou sob o comando do Gabinete de Etchegoyen.
A esta altura Jair Bolsonaro já despontava no horizonte, mas como um pangaré sem muita chance de levar de volta ao poder - desta vez pelo voto - a turma de milicos. Michel era a aposta, mas sua aprovação jamais saiu da casa de um dígito. Ainda bem. Michel chegou a ser incensado por Villas Bôas, que em fevereiro de 2017, num ato recheado de simbolismo, entregou o bastão do Exército (uma peça torneada em madeira), em suas mãos, com direito a fotos e cerimônia no Alto Comando.
Caso sua candidatura emplacasse, Sergio Etchegoyen certamente teria lugar garantido no primeiro escalão, e talvez estivesse se preparando para um governo sujeito a muita oposição. Não é possível que o GSI, órgão de inteligência a quem a ABIN era subordinada, não soubesse, não só da compra da parafernália, como da própria arapongagem. Cabe à Polícia apurar se ele foi o avalista da aquisição do programa espião.
Bolsonaro chegou lá, depois de um episódio controverso que fez o seu nome disparar nas votações. Sergio Etchegoyen foi varrido para a vida nos pampas, onde foi apascentar ovelhas e o GSI foi parar nas mãos do ultradireitista general Augusto Heleno, a quem coube – por orientação do chefe e com as bençãos de Carlos Bolsonaro, o Carluxo – a criação da Abin paralela.
Um sistema paralelo para chamar de seu - Em reunião no dia 22 de abril de 2020, Bolsonaro gritou que não confiava em seus serviços de informação e tinha o seu próprio, em plano funcionamento. A mídia, sempre tão zelosa de seu papel fiscalizador engoliu essa bola, olhou para cima, assobiou e seguiu a vida, sem vasculhar como funcionava esse sistema.
Dois dias depois, por ocasião da queda do ex-ministro Sergio Moro (em 24 de abril), escrevi artigo no 247, em que alertava: “Moro bombardeou Bolsonaro e ensaiou fazer uma revelação gravíssima, ao citar alguns nomes possíveis para a substituição do ex-diretor da Polícia Federal, Maurício Valeixo. Parecia querer contar (mas não foi adiante), que o próximo xerife da PF será Alexandre Ramagem, (o atual chefe da Abin), e que este vem a ser o homem que juntamente com Carluxo minou a permanência do general Santos Cruz no cargo e, com total apoio do empijamado Augusto Heleno, estruturou o plano de criação de um gabinete de Inteligência dentro do Planalto. UM NOVO SNI. E Moro, certamente, não ignorava isto, ou fingiu não ver.” >>Abin expande quadros de arapongas, nas várias esferas do poder, como fizeram os militares, na ditadura - Denise Assis - Brasil 247
A afirmação apenas insinuada do então ministro demissionário Sergio Moro reverberava as revelações explícitas feitas pelo ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, no dia 2 de março, em entrevista ao programa Roda Viva, em que acusava o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho de Jair Bolsonaro, de tentar montar uma espécie de Abin paralela nas dependências do Planalto. Ainda segundo ele, a estrutura idealizada por Carlos Bolsonaro seria empregada na elaboração de dossiês contra adversários. Sua fala foi reproduzida em matéria no 247.
“Um belo dia o Carlos Bolsonaro aparece com um nome de um delegado federal e três agentes que seriam uma Abin paralela. Isso porque ele não confiava na Abin”, disse Bebianno no Roda Viva.
“O general Heleno (chefe do Gabinete de Segurança Institucional) foi chamado. Ficou preocupado. Mas ele não é de confronto e o assunto acabou comigo e o general Santos Cruz (Carlos Alberto dos Santos Cruz, também demitido). Nós aconselhamos o presidente a não fazer aquilo porque também seria motivo de impeachment. Eu não sei se isso foi instalado porque depois eu acabei saindo do governo”, disse o ex-ministro em seguida.
Não precisamos esperar muito para verificar que Ramagem só não foi o indicado para a direção da Polícia Federal, conforme anunciou Moro, por uma decisão do ministro do STF Alexandre Moraes. A construção do novo SNI, no entanto, continuou a ser feita, vindo a público, numa tentativa de instrumentalização da Abin, por parte de Bolsonaro, que buscou em Heleno e Ramagem “socorro” para que a defesa de Flávio Bolsonaro pudesse produzir “argumentos” favoráveis a que ele se livre do processo e corrupção de que é acusado, pelo Ministério Público do Rio.
A Abin é uma espécie de filha do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de vigilância e perseguição criado na ditadura militar, e que havia sido extinto em 1990, por Fernando Collor, primeiro presidente eleito após a redemocratização. No lugar do SNI foi instituída a Secretaria de Assuntos Estratégico (SAE), com a finalidade de assumir as funções daquele órgão - muito estigmatizado na ditadura -, e absorver inclusive parte do seu quadro de pessoal (13%), mas agora com funções voltadas à inteligência e não mais à informação, como era o caso na época.
A denúncia, feita pelo jornalista Guilherme Amado (Revista Época), provocou rebuliço no governo, levou a ministra do Supremo, Carmem Lúcia, a exigir explicações do general Heleno e do chefe da Abin, Alexandre Ramagem, e gerou movimentação do PGR, Augusto Aras, que também solicitou informações sobre o caso.
Movimentação estranha - No dia 16 de dezembro de 2020, em matéria publicada no 247, eu denunciei uma movimentação estranha nos quadros da Agência, que contratava técnicos na área de tecnologia, para visível ampliação dos quadros da arapongagem.
“As informações, no entanto, estão debaixo do nariz de todos. Só não vê os que têm a obrigação de traduzir em minúcias da documentação jurídica, o que o país inteiro já sabe. A expansão da máquina de 'investigação' e 'monitoramento' da sociedade civil está a pleno vapor,” dizia o texto. “Basta uma pesquisa rápida na página da Abin, para ver o desmembrar constante do organograma em siglas mal explicadas no “Institucional” do portal da agência, evidência de que há um sem-fim de contratações de “agentes” e novos cargos.
A intenção não pode ser boa. A prática de espalhar “arapongas” por todos os órgãos de governo foi implementada pelos militares, na ditadura. Naquela época, porém, eles não perdiam tempo com editais e novos concursos. Recrutavam dentro das próprias seções e gabinetes públicos, os “investigadores” de que precisavam, acrescentando aos seus salários uma “gratificação”, para que, com ares de normalidade, sem levantar suspeitas dos colegas, esses funcionários vigiassem o cotidiano das repartições ou dos ambientes por eles frequentados. Os “gratificados” podiam ser selecionados nas esferas federal ou estaduais, de acordo com a necessidade do momento.
Àquela altura, a matéria apontava que havia circulado, na Carta Capital, naquele dia (16/12), notícia de que já haviam sido publicados 15 atos com nomeações para a função de “bisbilhotagem”, no atual governo. E, também, que uma fonte contou em off, à Agência Pública, “que há cerca de um mês, em visita ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, o diretor da Abin, Alexandre Ramagem, afirmou a interlocutores, que esse número deve aumentar. Ele teria dito que a intenção seria reforçar a estrutura de inteligência em todos os órgãos, criando nos ministérios e empresas e autarquias estatais relevantes, assessorias semelhantes ao que foi a Comissão Geral de Investigação (CGI), uma megaestrutura de inteligência que alimentava o extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), usada para espionar adversários do regime militar”. Segundo à agência Pública, “procurado por telefone, Ramagem não retornou a ligação”.
A julgar por uma publicação no Diário Oficial da União de 22 de março de 2019, o projeto de Bolsonaro vai superar o número de “arapongas” convocados na ditadura. “Ministério da Economia autorizou nesta sexta-feira (22/3), por intermédio da Portaria nº 101, publicada no Diário Oficial da União, o provimento de 214 candidatos aprovados no concurso público da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), autorizado em 2017 pela portaria nº 227. A responsabilidade pela nomeação será do diretor-geral da Abin, que deverá baixar as respectivas normas, mediante publicação de portarias ou outros atos administrativos necessários.” Além desses 214, a agência já havia publicado edital para novo concurso a realizar-se em 2021, e só não o fez porque foi surpreendida pela pandemia.
Deixa estar, que de mansinho o governo Bolsonaro já vinha fazendo o trabalho sujo de “arapongar” pessoas da sociedade brasileira, sorrateiramente, desde o início. Em abril de 2020 veio a público a notícia de que a PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu esclarecimentos ao ex-ministro da Justiça e na época deslocado para a função de advogado-geral da União, André Mendonça, sobre inquéritos abertos para investigar opositores do governo com base na Lei de Segurança Nacional (então ainda em vigor).
A PGR decidiu abrir a “notícia de fato” depois de representações de congressistas do PT e do PSOL, que indicaram que o ministro pedia investigações sem haver nenhum indício da prática de crime. A bancada do PSOL entrou com representação, pedindo que apurasse se havia indícios de abuso de autoridade e, em caso positivo, que fosse aberta investigação.
“O aparelhamento do Estado para perseguir opositores políticos não é legitimo na Democracia. Admitir-se a manutenção dessa lógica significa permitir que o Presidente da República e Ministros de Estado tenham sob seu comando uma verdadeira polícia política, cujas ações podem ser direcionadas para perseguir seus adversários e desafetos, algo típico de regimes autoritários, além de proteger seus aliados”, dizia a representação assinada pela líder do PSOL na Câmara, Talíria Petrone (RJ), e demais membros da bancada.
A investigação andou. A solicitação para esclarecimento foi enviada a Mendonça pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros em 22 de março. Uma semana depois, na 2ª feira (29.mar.2021), Bolsonaro tirou Mendonça da pasta da Justiça e o colocou no comando da AGU. O assunto morreu. Pelo visto, a arapongagem continuou comendo solta entre os de dentro e os de fora do governo. O general Augusto Heleno continuou nas sombras, orquestrando golpes e contragolpes, bem como todo o entorno de Bolsonaro. Manteve no GSI a sua turma, que lhe foi fiel até o 8 de janeiro, quando recepcionaram com água e gentilezas os que invadiram os prédios dos três poderes. Deu no que deu.
Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".
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