Exército: a serviço de quem?

"Hoje estamos começando a aprender que a História pode se repetir, tanto como tragédia pura, mas também como farsa e paródia coexistindo com ela", escreve o ex-ministro da Justiça Tarso Genro

Tarso Genro
Publicada em 12 de julho de 2021 às 09:47
Exército: a serviço de quem?

A democracia liberal em crise no mundo – no Brasil que degrada de forma planejada o Estado Social – agora faz uma paródia de si mesma. Nesta degradação, a relação do fascismo societal, racista e escravocrata, com o escárnio da República promovido pelo Presidente Bolsonaro, chega ao momento da sua potência máxima. E este máximo – o inferno tão temido, como no conto de Onetti – ainda está incompleto. Não se sabe, ainda, se o nosso destino está tolhido pela última manifestação da Caserna ou se ele vai ser reaberto pelo que nos resta de vergonha republicana.

A nota do Ministro da Defesa, firmada pelos demais Comandantes das Forças Armadas, não tem a finalidade principal de atemorizar, mas tem um objetivo muito mais complexo: tirar a dúvida dos políticos tradicionais sobre “de quem” é o Exército: se é de Bolsonaro ou da República, como determina a Constituição.

Esta dúvida, no pensamento tutelador que a escreveu, deve ser expurgada da mente do corpo político (deve ter pensado o Ministro da Defesa) porque se ela prosperar, um militar fracassado que é Presidente, pode deixar de contaminar a caserna, que então absorverá – finalmente – que o Exército não é uma guarda pretoriana a serviço de uma família, mas uma instituição a serviço da Constituição e da Soberania Nacional.

O excelente livro de Marcia Tiburi, Complexo de vira-lata (Civilização Brasileira, 2021) é um conjunto invejável de ideias sobre a dominação e a humilhação dos brasileiros – de antes da República e de agora- que tem vários momentos de brilho. A obra ajuda na compreensão da tragédia nacional em andamento e em alguns momentos – como quando a autora discorre sobre o que designa como “Complexo de Colombo” – ilumina toda uma época. Este complexo seria no plano da subjetividade popular o modo de criar consensos, através de uma adesão formatada pela violência.

Esta seria a “matriz subjetiva fundamental que constitui o sujeito do surgimento das Américas” (…) “padrão de dominação que envolve Estado, Igrejas” (…) processo “reiterado por séculos” (…) “que é um padrão de relação com o outro, no qual não se pode dizer que haja comunicação”, (…) no qual “não se promovem trocas”, senão “a reprodução da invasão e da violência”. Nesse padrão, os indígenas e os escravos são primariamente os “outros” desconhecidos, invadidos e violentados – nas suas mentes e corpos – para serem desalojados das terras mercantilizadas e dos seus corpos tornados mercadorias.

Este padrão de dominação no capitalismo moderno envolve desde o controle da informação pelos oligopólios da mídia, a reprodução da ignorância e do charlatanismo pelas religiões fundamentalistas do dinheiro, até a eterna tutela das Forças Armadas sobre os processos políticos da democracia liberal. Esta tutela se explicita em momentos de crise, nos quais ela não informa, nem pretende intercambiar opiniões, mas quer ordenar o estado de coisas e advertir dos perigos identificáveis.

Mas quais seriam estes perigos, na paródia atual? Seria a possibilidade de que quadros militares em funções civis podem ser identificados como corruptos e tal fato poderia ferir a corporação tuteladora? Se este era o “perigo” a ser superado, o que fez a Nota – na verdade – foi promover o aumento do perigo e o esvaziamento da Constituição: os atos criminosos de militares em funções civis, se ocorreram, deveriam promover o expurgo legal destes militares e a sua punição por delitos cometidos naquelas funções civis, onde desonraram a farda e agrediram a honra das Forças Armadas e das instituições civis do Estado.

A afirmação do modo de dominação nas crises se serve, sempre, de “homens-bomba” para concentrar as culpas e simular a superação das mazelas da velha democracia liberal, que há mais de 200 anos não renova as suas instituições. Na sua etapa ultraliberal, porém, ela satisfaz as identidades pessoais dos cidadãos pelos fetichismos da igualdade no mercado, não pelo direito de participar de uma comunidade de destino na formação da nação. É o momento em que a democracia tateia em busca de uma luz, que não seja um trem no fundo do túnel, que venha tutelar as promessas da República.

Esta Nota dos militares foi o trem do momento. Tomara seja apenas uma ficção das trevas que a Constituição cidadã tentou sepultar para sempre. Pensar que os militares do país possam se conceber como guardiões do bolsonarismo demente é matar toda a esperança e acolher a possibilidade de que o “Haiti é aqui!”. Ou que estamos vivendo a entrada do Inferno de Dante, ou que o fantasma de Hitler se firme num horizonte de sangue, como um Vampiro da história, encarnando o “Complexo de Colombo”.

Neste, a humilhação deixa de ser uma tática fundamental e passa a ser a estratégia estatal da morte. Ninguém acreditava que isso fosse possível na Alemanha dos anos 1920, mas hoje estamos começando a aprender que a História pode se repetir, tanto como tragédia pura, mas também como farsa e paródia coexistindo com ela.

Fora Bolsonaro, antes que seja tarde!

Tarso Genro

Tarso Genro é um advogado, jornalista, professor universitário, ensaísta, poeta e político brasileiro filiado ao Partido dos Trabalhadores.

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