Lei torna depoimento especial obrigatório em todo o país
Criada no RS, escuta sem dano evita que vítima de abuso volte a sofrer ao depor sobre o crime.
Foi sancionada, no último dia 4, a lei que torna obrigatória a aplicação do depoimento especial em todo o país. A medida reconhece projeto que começou na Justiça do Rio Grande do Sul e consiste em uma das principais ferramentas de trabalho para operadores do direito que atuam em casos de violência contra crianças e adolescentes.
De autoria da deputada Maria do Rosário, o projeto de lei foi construído com a colaboração de uma série de especialistas no assunto, entre eles, o desembargador José Antônio Daltoé Cezar, criador do depoimento sem dano, hoje chamado de depoimento especial. A lei vigora após um ano da publicação.
“Vamos ter uma base legal para realizar esse trabalho, que já está sendo adotado em várias partes do país. Houve algumas dificuldades porque não existia uma orientação de como se fazer. Sabia-se que era bom, mas se discutia na jurisprudência, na doutrina. Agora, com a base legal, tudo fica mais fácil e teremos condições de implantar esse projeto em todo o Brasil”, afirma o desembargador.
Daltoé explica que nos processos que envolvem menores, como violência sexual, maus tratos, perda do poder familiar, adoção, divórcio, entre outros, a forma de lidar com o conflito faz toda a diferença. Segundo o juiz, a ideia de introduzir uma sistemática própria para esses casos quis oferecer a essas vítimas uma forma de falar do problema sem causar danos ainda maiores.
“Esse é um tipo de crime que as estimativas mundiais, pois não temos como fazer estatística, apontam que somente 10% é notificado. Do total, 90% nunca serão informados, porque é um crime, em regra, praticado dentro da esfera de proteção, na família, onde a criança está integrada. É muito difícil de revelar”, explica o magistrado.
A assistente social da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude do TJRS, Marleci Venério Hoffmeister, que trabalhou no projeto, inclusive com a publicação de obras sobre o assunto, afirma que a lei é uma conquista, sobretudo para crianças e adolescentes. “É necessário ter um olhar mais direcionado para esse ser que é um sujeito de direitos e que muitas vezes, em diferentes segmentos, não é visto como tal. A gente que trabalha com a escuta de crianças e adolescentes sabe que isso é um ganho imensurável, porque ainda que essa escuta traga um sentimento de dor, de medo, busca amenizar o sofrimento dentro desse momento de escuta que elas estão realizando no Judiciário. Isso, por si só já mostra a importância da lei”, afirma Marleci.
RS tem 42 comarcas equipadas para depoimento especial
O projeto iniciou-se em 2003, quando o desembargador Daltoé atuava na Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre. Ele recorda que o depoimento de uma criança que o fez refletir sobre a questão nesse tipo de processo. “Em 2003, quando eu estava aqui em POA, na Vara da Infância, eu ouvi uma menina pequena, cerca de seis, sete anos, que tinha sido abusada por um adolescente. Depois daquele depoimento eu disse para mim mesmo, nunca mais vou fazer dessa forma, precisamos arranjar uma alternativa de mudar isso. E era uma época em que começaram a surgir essas câmeras de segurança para as casas e pensei que poderíamos utilizar essa ferramenta.”
A partir daquele momento, o magistrado e o promotor de justiça que atuavam na vara instalaram os equipamentos e realizaram as escutas especiais. Em 2004, o Corregedor-Geral da Justiça na época, Desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, assistiu a audiência com essa sistemática, aprovou o projeto e encaminhou a compra de equipamentos para os 10 Juizados Regionais da Infância e Juventude.
A juíza-corregedora Andréa Rezende Russo, titular da Coordenadoria Estadual da Infância e Juventude, destaca que a lei reforça algo que já realizado há muito tempo no Judiciário gaúcho. “Para o Poder Judiciário e a sociedade, é um grande avanço dentro do sistema de garantias de direitos das crianças e adolescentes, embora nós já estejamos avançados a respeito da utilização do Depoimento Especial. É algo que acontece há muitos anos e que vem sendo ampliado. No total, já são 42 comarcas equipadas”, afirma a magistrada.
A juíza também destaca os investimentos da Administração para a capacitação de magistrados e equipes técnicas, como a promoção de cursos presenciais e na forma de EAD, sobre a realização de depoimento especial, que devem ser ampliados neste ano, principalmente em função da aprovação da lei.
“Estamos com planejamento de continuidade da capacitação de magistrados e equipes técnicas. Na 2ª Semana do Depoimento Especial, que será realizada entre 15 e 21 de maio, vamos promover um seminário para magistrados, no qual vamos discutir a lei e outros temas relativos ao depoimento especial e aos crimes envolvendo violência sexual contra crianças e adolescentes”, informa a juíza.
Depoimento Especial
O depoimento especial assegura à criança e ao adolescente vítima de violência o direito de ser ouvido em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaços físicos que garantam sua privacidade. Esses jovens também não terão contato, nem mesmo visual, com o acusado. As vítimas passam a ser acompanhados por profissionais especializados em saúde, assistência social e segurança pública. Será criado um serviço de atendimento para denúncias de abuso e de exploração sexual.
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