Memórias de um “açougue”

Estou em estado de penúria há muito tempo e não vejo nenhuma providência séria para resolver a minha triste sina.

Professor Nazareno*
Publicada em 04 de junho de 2019 às 12:00
Memórias de um “açougue”

Sou o “açougue” João Paulo Segundo da capital de Roraima. Inicialmente fui projetado para ser um pequeno hospital de uma firma, mas aos poucos minha função foi se adequando à realidade de uma cidade que não parava de crescer. Sempre cumpri a minha obrigação sem nenhum problema, mas a demanda que vinha para mim só aumentava e por isso fui aos poucos perdendo a minha capacidade de prestar bons serviços. Tenho 35 anos de existência e neste período muito pouco foi feito para minha melhoria. De início, atendia somente aos pacientes da Eletronorte, depois a coisa foi tomando as proporções de hoje. Estou em estado de penúria há muito tempo e não vejo nenhuma providência séria para resolver a minha triste sina. Primeiro, fui transformado em um “açougue” e logo após funcionei como um horroroso campo de concentração.

Pouco tempo depois, fui elevado a “campo de extermínio de pobres”, função que exerço até hoje e nunca entendi por que o meu nome é uma homenagem a um homem quase santo. Em janeiro de 2011, bancada com dinheiro do próprio Estado, a poderosa TV Globo esteve comigo. Suas reportagens me escancararam, me expuseram, me desnudaram ao Brasil e ao mundo. Minhas mazelas foram enfim, denunciadas. Achei que daquele momento em diante teria todas as minhas feridas curadas. Mas me enganei. As coisas só pioraram para mim. O uso político de minha imagem é uma desgraça ainda maior do que a morte dos meus pacientes. Entra governo e sai governo e a minha sina continua. Só recebo as pessoas sem dinheiro, os despossuídos e pobres. Ricos em meus leitos só quando sofrem acidentes, mas logo são transferidos. Todos eles fogem de mim.

Odeio a cidade onde moro. Ela não tem sequer um hospital de pronto socorro e quer que eu seja o seu eterno “quebra galho”. Por isso não exerço corretamente a minha faina. Aliás, a cidade onde me situo é uma porcaria só. Não tem esgoto sanitário, não tem água tratada nem a menor infraestrutura para ser uma cidade de verdade. O trânsito é caótico e a violência é uma rotina diária. Talvez por tudo isso é que tenho esta demanda tão grande. Durante as campanhas eleitorais acho bonito os candidatos falarem sobre mim. Suas soluções miraculosas, seus conselhos, suas promessas, suas mentiras. Mesmo assim, há quase quarenta anos estou padecendo e faço todos os meus pacientes padecerem também por causa da irresponsabilidade e do descaso desses mesmos políticos. Nunca salvei a vida de ninguém, mas apesar de tudo, já adiei muitas mortes.

O meu sonho é ver um governador desse Estado, um prefeito da capital, um senador, um secretário de Estado, um deputado, um desembargador, um juiz, uma pessoa rica ou outra autoridade qualquer precisar dos meus serviços. Dificilmente vejo essa gente por aqui. Em todas as suas entrevistas muitos deles dizem que vão me substituir por que estou muito velho e imprestável. Depois se esquecem. Se fizerem isso, os desassistidos e os pobres terão vez, respeito e dignidade. Porém, como muitos dos poderosos querem distância dos pobres, é muito difícil acreditar nessa lorota. Essas mesmas autoridades constroem verdadeiros “palácios de mármore” na cidade e se esquecem de me substituir. Sempre estive situado na frente de engarrafamentos. Antes era pela manhã, agora é pela tarde. Acho que não tenho chances de me aposentar. Até quando durará esse meu tormento? Quando alguém me olhará e fará justiça aos pobres?

 

*É Professor em Porto Velho.

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