Mídia tradicional tenta estabelecer um Haddad X Lula

Desonestidade intelectual. Tenta pintar com as mesmas tintas do passado, endurecidas na paleta de cores, um quadro com ares "populistas", escreve Denise Assis

Fonte: Denise Assis - Publicada em 19 de julho de 2024 às 18:08

Luiz Inácio Lula da Silva (à esq.) e Fernando HaddadLuiz Inácio Lula da Silva (à esq.) e Fernando Haddad (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Os trinta anos do Real foi uma ótima oportunidade para que os personagens que participaram de sua construção arrumem a própria imagem. Contratou-se maquiador e cabeleireiro. Todo o cuidado foi pouco para os retoques de biografia. Cada um, a seu termo, veio a público contar casinhos que caem bem no gosto do público neoliberal e dos novos fazedores de História.

No afã dessa “reorganização”, houve até quem inventasse episódios semelhantes, superpondo situações que os empurrassem para os refletores num bom ângulo. E assim, lemos na mídia tradicional que Rubens Ricupero ameaçou o presidente Itamar Franco de pedido de demissão, caso não concordasse com os seus ditames. Hoje, do mesmo modo, um colunista reproduz a mesma historinha atribuindo-a ao ex-presidente e ministro da Fazenda de então.

“FHC se viu obrigado a deixar claro ao presidente Itamar Franco que se demitiria do cargo de ministro da Fazenda, caso o plano de estabilização viesse a ser comprometido por interferências impensadas”, escreve o plantonista da coluna.

Itamar está morto. Não retorna do outro lado para redarguir ou desmenti-lo. Seus assessores, em sua maioria, também já se foram, e os que vivos estão, querem mais um pijama e um bom par de pantufas. Talvez nem percam tempo em passar os olhos nos jornais. Porém, quem conheceu o ex-presidente Itamar Franco ou teve oportunidade de presenciar certos momentos do seu governo, saiba que esse diálogo entre seus ministros e ele, é improvável.

Fosse quem fosse, ministro ou qualquer tipo de autoridade que lhe dirigisse uma chantagem desse tipo, sairia de sua sala demitido. Itamar Franco costumava dizer que sua mãe, D. Itália, o havia ensinado a olhar acima das montanhas mineiras e ter altivez semelhante. Perdesse o que perdesse, não admitia ser colocado contra a parede. Portanto, tanto Ricupero quanto FHC ou estão afetados em suas memórias, ou se equivocam na afirmação.

O ex-presidente, tido como alguém de personalidade “mercurial”, não costumava levar desaforo para casa. Suas relações com os companheiros de governo eram cordiais ou não eram mais nada. E para chegar ao fim do governo, considerado a ponto de virar o seu candidato a substituí-lo no posto, só mesmo gozando de sua confiança plena. Não havia espaço para rusgas ou arroubos. Itamar Franco prezava o bom trato e a confiança. Portanto, se sobreviveram, tanto Ricupero quanto FHC, nos seus quadros, é porque seguiam sendo considerados.

Eu estava em sua sala, em companhia do fotógrafo Gervásio Batista, já nos despedindo no final de uma entrevista, quando ele pediu ao ajudante de ordem que chamasse o “Fernando”. Era assim que tratava o ministro. Vi quando FHC entrou e, depois dos cumprimentos rotineiros, ainda tive tempo de testemunhar o seguinte despacho: “Fernando, eu o chamei aqui, porque o Arida e o Bacha estão trabalhando num estudo sobre uma nova moeda e eu queria que você se reunisse com eles e coordenasse esse trabalho”. Qualquer coisa diferente disso, foge à minha compreensão, pois fui testemunha ocular desse momento.

Contar o caso como preferem é reformulação de biografia e usurpação de papel. O desfile de depoimentos empavonados para se apropriar de um naco da moeda que deu certo, a custa de muitas revisões críticas que não foram feitas, é apropriação indébita, jogando para fora da história o seu personagem central. Quer queiram quer não queiram, o ex-presidente (independente de qualquer análise que se faça de sua personalidade, do seu governo ou do seu legado), foi varrido para debaixo do tapete, nesse aniversário. Em não havendo ninguém para rebater, é assim que reinarão essas biografias nos próximos 30 anos.

O colunista, com o propósito de fazer o mesmo com Haddad e Lula - que está vivinho da Silva, e pronto para encarar 2026 -, tenta passar a ideia de que o ministro da Fazenda tem feito jogo duplo: “Pra que Lula possa continuar a esticar a corda da irresponsabilidade fiscal, sem chegar a rompê-la, Haddad terá de preservar sua imagem no mercado e na mídia”.

Desonestidade intelectual. Tenta pintar com as mesmas tintas do passado, endurecidas na paleta de cores, um quadro com ares “populistas”. Lula já governou esse país e costuma ver o povo na sua frente e as carências que conhece bem de um passado de fome. Não resvalou antes para a irresponsabilidade. Deixou US$ 380 bilhões nos cofres do tesouro. Irresponsabilidade, senhor, é trocar a redução da desigualdade pelas notas frias de títulos e ações, numa avenida bem calçada e iluminada. Tente empilhar a história do jeito que quiser, quando testemunhas “abelhudas” não estiverem mais por aqui.

Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Mídia tradicional tenta estabelecer um Haddad X Lula

Desonestidade intelectual. Tenta pintar com as mesmas tintas do passado, endurecidas na paleta de cores, um quadro com ares "populistas", escreve Denise Assis

Denise Assis
Publicada em 19 de julho de 2024 às 18:08

Luiz Inácio Lula da Silva (à esq.) e Fernando HaddadLuiz Inácio Lula da Silva (à esq.) e Fernando Haddad (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Os trinta anos do Real foi uma ótima oportunidade para que os personagens que participaram de sua construção arrumem a própria imagem. Contratou-se maquiador e cabeleireiro. Todo o cuidado foi pouco para os retoques de biografia. Cada um, a seu termo, veio a público contar casinhos que caem bem no gosto do público neoliberal e dos novos fazedores de História.

No afã dessa “reorganização”, houve até quem inventasse episódios semelhantes, superpondo situações que os empurrassem para os refletores num bom ângulo. E assim, lemos na mídia tradicional que Rubens Ricupero ameaçou o presidente Itamar Franco de pedido de demissão, caso não concordasse com os seus ditames. Hoje, do mesmo modo, um colunista reproduz a mesma historinha atribuindo-a ao ex-presidente e ministro da Fazenda de então.

“FHC se viu obrigado a deixar claro ao presidente Itamar Franco que se demitiria do cargo de ministro da Fazenda, caso o plano de estabilização viesse a ser comprometido por interferências impensadas”, escreve o plantonista da coluna.

Itamar está morto. Não retorna do outro lado para redarguir ou desmenti-lo. Seus assessores, em sua maioria, também já se foram, e os que vivos estão, querem mais um pijama e um bom par de pantufas. Talvez nem percam tempo em passar os olhos nos jornais. Porém, quem conheceu o ex-presidente Itamar Franco ou teve oportunidade de presenciar certos momentos do seu governo, saiba que esse diálogo entre seus ministros e ele, é improvável.

Fosse quem fosse, ministro ou qualquer tipo de autoridade que lhe dirigisse uma chantagem desse tipo, sairia de sua sala demitido. Itamar Franco costumava dizer que sua mãe, D. Itália, o havia ensinado a olhar acima das montanhas mineiras e ter altivez semelhante. Perdesse o que perdesse, não admitia ser colocado contra a parede. Portanto, tanto Ricupero quanto FHC ou estão afetados em suas memórias, ou se equivocam na afirmação.

O ex-presidente, tido como alguém de personalidade “mercurial”, não costumava levar desaforo para casa. Suas relações com os companheiros de governo eram cordiais ou não eram mais nada. E para chegar ao fim do governo, considerado a ponto de virar o seu candidato a substituí-lo no posto, só mesmo gozando de sua confiança plena. Não havia espaço para rusgas ou arroubos. Itamar Franco prezava o bom trato e a confiança. Portanto, se sobreviveram, tanto Ricupero quanto FHC, nos seus quadros, é porque seguiam sendo considerados.

Eu estava em sua sala, em companhia do fotógrafo Gervásio Batista, já nos despedindo no final de uma entrevista, quando ele pediu ao ajudante de ordem que chamasse o “Fernando”. Era assim que tratava o ministro. Vi quando FHC entrou e, depois dos cumprimentos rotineiros, ainda tive tempo de testemunhar o seguinte despacho: “Fernando, eu o chamei aqui, porque o Arida e o Bacha estão trabalhando num estudo sobre uma nova moeda e eu queria que você se reunisse com eles e coordenasse esse trabalho”. Qualquer coisa diferente disso, foge à minha compreensão, pois fui testemunha ocular desse momento.

Contar o caso como preferem é reformulação de biografia e usurpação de papel. O desfile de depoimentos empavonados para se apropriar de um naco da moeda que deu certo, a custa de muitas revisões críticas que não foram feitas, é apropriação indébita, jogando para fora da história o seu personagem central. Quer queiram quer não queiram, o ex-presidente (independente de qualquer análise que se faça de sua personalidade, do seu governo ou do seu legado), foi varrido para debaixo do tapete, nesse aniversário. Em não havendo ninguém para rebater, é assim que reinarão essas biografias nos próximos 30 anos.

O colunista, com o propósito de fazer o mesmo com Haddad e Lula - que está vivinho da Silva, e pronto para encarar 2026 -, tenta passar a ideia de que o ministro da Fazenda tem feito jogo duplo: “Pra que Lula possa continuar a esticar a corda da irresponsabilidade fiscal, sem chegar a rompê-la, Haddad terá de preservar sua imagem no mercado e na mídia”.

Desonestidade intelectual. Tenta pintar com as mesmas tintas do passado, endurecidas na paleta de cores, um quadro com ares “populistas”. Lula já governou esse país e costuma ver o povo na sua frente e as carências que conhece bem de um passado de fome. Não resvalou antes para a irresponsabilidade. Deixou US$ 380 bilhões nos cofres do tesouro. Irresponsabilidade, senhor, é trocar a redução da desigualdade pelas notas frias de títulos e ações, numa avenida bem calçada e iluminada. Tente empilhar a história do jeito que quiser, quando testemunhas “abelhudas” não estiverem mais por aqui.

Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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