Militares sob vara? Vá pela sombra!
Selva! A onça, símbolo do batalhão, mas só a cutuque com vara bem longa
(Foto: Ricardo Moraes/Reuters)
Muito se ouve pelos rincões do Brasil, em especial aquelas paragens áridas, de sol inclemente. O que importa é que há pouco você pôde constatar na prática, e na pele, a tal expressão popular "Vai pela sombra". Ao rigor o certo seria "Vá pela sombra". O que vai pela sombra é aquilo que se move à sombra. Vai pela sombra aquele que, prudente e experiente, caminha na projeção de sombras debaixo das árvores, por precaução evita o sol forte, teme e respeita a insolação.
Mas você constatou na prática, na pele, e sequer nos rincões áridos do interior brasileiro se encontrava, estava na cidade mesmo, das grandes, uma megalópole. Era um dia especialmente quente de verão, aquela época do ano de dias mais quentes combinados com secura do ar, atípicos para um verão nacional quente e chuvoso.
Fortemente somada, a imensidão de asfalto da metrópole, o piche preto que derrete ao sol forte, o mesmo piche de asfalto que você quando garoto se divertia pisando em tampinhas de metal de garrafas de tubaína, eternizando-as na rua, a sua assinatura, sua marca triunfal de criança para sempre no asfalto das ruas dos outros meninos rivais, uma diversão.
Uma política presidenciável eminente, Soraya Thronicke, de oposição e de flertes pretéritos junto ao ex-presidente neofascista brasileiro, sugeriu em entrevista que militares eventualmente implicados em atos golpistas de oito de janeiro devam ser conduzidos ao rigor da lei, sob vara se necessário. Este o termo, "Condução sob vara", ou seja, sob a vara da lei em caso de desacordo. Daí também o termo atual vara cível, vara judiciária, e por aí vai.
Mais pareceu a você que a tal política eminente dizia conclusiva, porém de forma escamoteada: "Vá lá, presidente Lula, cutuque a onça com força e sem dó, você é capaz até de matá-la, porém nem desconfia você, presidente Lula, que se chegar a matar a onça somente o fará mediante um ferimento mortal pós-embate que lhe custará também a vida". Pareceu que a ex e provável futura candidata presidencial quis dizer algo assim, de forma nem tão subliminar. Ouvidos a quem queira escutar.
Muito fácil, cômodo e simples, sugerir aos outros o que não temos coragem de fazer. O resultado pragmático seria duplamente favorável para Soraya, teria ela à frente o caminho limpo a contemplar os cadáveres de forças adversárias entre si e, também para ela, forças diretamente competidoras.
Algo tal qual torcer, naqueles filmes antigos de bang bang, para que, em duelo justo, os dois atiradores perfilados em frente ao saloon do velho Oeste ianque saquem do coldre os seus revólveres simultaneamente e se liquidem um ao outro.
A tal vara tem origem histórica tanto em sentido de uma identificação, os feixes de varas portados por autoridades imperiais, milênios atrás, tanto quanto a vara em seu sentido mais banal, a vara tal qual o contemporâneo cassetete policial.
Aquele mesmo porrete de borracha maciça que se via, nos anos 80, ainda um último presidente militar usurpador de cargo. Nos anos 80 se via muito a PM descer o cassetete para moldar as filas caóticas de gente em portas de estádios de futebol e de shows de rock.
Tudo na base da cacetada. Mesmo hoje, século XXI, vê-se no Sudeste Asiático em desenvolvimento. Lá a relação estreita dos povos com as espécies de bambus nativos, por lá os bambus mais finos se transformam em eficientes varas ideais para marcar as peles, corpos de gente julgada indisciplinada pela polícia.
Polícia que com as varas de bambu bate com força e risca linhas vermelhas no lombo do povo, de uma forma ardida, dolorosa, a sensação de queimação, vergões avermelhados nas costas e braços de um infeliz objeto de ira policial em país do Sudeste Asiático mais calorento e caótico.
Problema grande quando se misturam alhos com bugalhos e alguém, de forma mal-intencionada, frisa o sentido de vara, o feixe de varas, tal qual o fasces do Império Romano, que sim inspirou Mussolini e colegas ao fascismo italiano o qual, até hoje, reverbera em novas modalidades extravagantes. O neofascismo tóxico de dispersão mundial, Brasil varonil de samba e pandeiro definitivamente incluso no rol nefasto e vergonhoso.
Tudo isso somado, claro apareceu em sua mente ao caminhar em um dia quente de verão na megalópole, duas horas da tarde, um abafamento quase insuportável catalisado pelos gases cinzentos de escapamentos veiculares cuspidos contínuos de caminhões velhos que passavam pela avenida bem ao seu lado, você um inofensivo pedestre suarento a respirar monóxido de carbono.
Observador que é, você notou que às duas horas da tarde havia uma minúscula largura de alguma sombra na calçada da avenida, ao menos quando esta estivesse ladeada por algum edifício ou estabelecimento comercial. Notou também que muita gente andava pela sombra.
Passou por sua mente uma memória fotográfica bizarra, você a trabalho em Belém do Pará. Para economizar grana pegou um ônibus metropolitano em um curto trajeto desde o hotel ao centro da capital paraense. Na parada, ou ponto de ônibus, como queiram regionalmente, nenhum abrigo ou cobertura ou estrutura mínima havia, as pessoas aguardavam os ônibus agoniadas debaixo de sol forte.
O bizarro foi a cena fotográfica comum de presenciar em cidades quentes de sol inclemente. Ao lado da parada de ônibus, uma sombra delgada que se estendia no asfalto e que muito lentamente se movia, acompanhando a trajetória do sol no firmamento diurno. Era a sombra de uma placa de trânsito ao meio da avenida, sombra de placa de sinalização que era projetada à calçada, no local da parada de ônibus.
Sombra de poucos dois metros quadrados. Nesta sombra um bocado de gente aglomerada, que se movia lentamente, passos curtos, tímidos, acompanhando a tal sombra de placa salvadora que aliviava, mas não resolvia o quase insuportável calor refletido e aumentado pelo asfalto negro quente, o betume mesmo que deve haver nas profundezas do inferno.
O "Vai pela sombra" lhe fez total sentido. Diz-se muito pelos interiores áridos. Uma garantia, precaução, contada em prosa pelos anciões das vilas de vida calma, os velhinhos que ditam aos viajantes incautos e inexperientes: "Vai pela sombra que é mais garantido, meu filho, senão pega insolação e não completa o percurso".
Melhor sempre a precaução e os conselhos das pessoas bem mais experientes e vividas, aquelas que aprenderam pela dor e não pelo amor, aprenderam e nunca mais esquecerão, pois sofreram nas próprias peles os maus bocados de uma má escolha.
Uma escolha que, se malfeita, pode a princípio mostrar-se corajosa, ousada, valente, mas que acaba por se revelar imprudente. Desprezar o sábio conselho ancião, o caminhar pelas sombras, o fez tontear debaixo do sol forte, sol inclemente, o fez transpirar em demasia, a ponto de quase desfalecer, um princípio de insolação.
Pra que cutucar a onça? Deixa a bicha quieta. Cada expressão popular canhestra! Atirar o pau no gato pra ver se o gato morre e ver dona Chica se espantar com o berro que o gato deu, miau! Deixem os felinos em paz.
Não, Soraya Thronicke, o Lula não será tolo a cutucar a onça com vara curta, não lhe fará este favor político bem conveniente para a sua nova candidatura presidencial em breve futuro, não, senadora Soraya.
"Gato escaldado tem medo de água fria", só pra ficar nas expressões populares relativas aos felinos. Lula já foi preso, está atento. Temor ao adversário denota respeito e, sobretudo, perspicácia, é sempre recomendado pelos praticantes clássicos de artes marciais milenares.
Que todos/as saibam: aquele que um dia passou fome não está pra brincadeira. Quem já passou fome na vida carrega as cicatrizes na alma e o contínuo alerta no olhar.
Ademais, sempre mais agradável caminhar pelas sombras, caminhar bem, é mais saudável. Quando elas houver pelos caminhos escolha o frescor, o percurso bem mais tranquilo e objetivo, evite a insolação que tirará o seu bom humor pelo resto do dia e porá a conclusão de sua jornada em risco.
Os anciões de vilas calmas de interior sabem muito sobre a vida das pessoas, recomendam também muita cautela com os bichos das matas, dizem "Cuidado com a onça". A onça, de longe, o mais esperto e sorrateiro dentre todos os bichos das matas brasileiras.
Rogério Puerta
Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros
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