Órgãos de direitos humanos recorrerão da decisão de incinerar ossadas

Segundo a prefeitura, depois de removidas, as ossadas perderam a identificação, devido à passagem do tempo, não foi possível identificá-las novamente e houve abandono por parte dos parentes.

Camila Boehm – Repórter da Agência Brasil
Publicada em 30 de junho de 2018 às 08:56
Órgãos de direitos humanos recorrerão da decisão de incinerar ossadas

A prefeitura da cidade de São Paulo conseguiu autorização da Justiça paulista para incinerar cerca de 1.600 ossadas que estão no Cemitério Municipal da Quarta Parada, localizado na zona leste da capital. As ossadas foram removidas das sepulturas no período de 1941 a 2000. Segundo a prefeitura, depois de removidas, as ossadas perderam a identificação, devido à passagem do tempo, não foi possível identificá-las novamente e houve abandono por parte dos parentes.

Para o coordenador do Instituto de Pesquisa dos Direitos e Movimentos Sociais, Pádua Fernandes, a decisão fere vários dispositivos legais. O ex-deputado Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do estado, informou que entidades de direitos humanos vão recorrer da decisão na Justiça. Hoje sábado (30), às 16h, haverá um ato ecumênico no velório do cemitério de Quarta Parada em protesto contra a incineração das ossadas.

A prefeitura argumenta que o Cemitério da Quarta Parada não tem quadra geral, ou seja, não pode haver sepultamento de pessoas não identificadas, como indigentes ou desaparecidos políticos, e que apenas quem já foi algum dia identificado ainda pode ter ossadas ainda no local.

O advogado Pádua Fernandes explica por que a autorização para incinerar as ossadas fere normas legais: “Em primeiro lugar, esses restos mortais não são propriedade da prefeitura. Pelo Código Civil, pertencem às famílias [dos mortos]. Em segundo lugar, destruir esses restos mortais de corpos não identificados significa também destruir a prova de eventuais crimes”.

Segundo ele, a ação “fere o princípio da dignidade humana, que engloba a proteção aos cadáveres. Fere, no direito nacional, segundo a convenção americana sobre os direitos humanos, o direito à proteção judicial, às garantias judiciais na medida em que você está destruindo provas de crimes, destruindo a memória e a verdade sobre a história dessas vítimas, desses mortos”.

O advogado lembrou da conclusão do relatório da Comissão da Memória e Verdade municipal, que diz que “o papel da prefeitura de São Paulo no sistema de repressão política era fazer desaparecer os cadáveres. Então as vítimas eram mortas, eram enviadas aos cemitérios municipais, que as sepultavam com identidades trocadas ou de forma não identificada. E esse Cemitério da Quarta Parada é citado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, assim como no relatório da comissão municipal. Esses mortos que a prefeitura pretende incinerar vão dos anos 1941 até 2000, pega também a ditadura militar.”

Para o ex-deputado estadual Adriano Diogo, não deveria ser necessário identificar novamente as ossadas, uma vez que isso já foi feito na ocasião do sepultamento. Ele não descarta, porém, a possibilidade de existirem também ossadas de indigentes e desaparecidos políticos entre os restos mortais do Quarta Parada, e sustenta que há, sim, formas de se identificar as ossadas, por exemplo, por meio de exames de DNA.

“Quando a prefeitura vai fazer a exumação, liga para quem foi no dia contratar o serviço funerário. Mas a pessoa pode não estar mais morando em São Paulo, o celular pode ter mudado, o emprego pode ter outro número de telefone, e aí acabou a pesquisa da prefeitura, ela não procura mais. Aí, ela [prefeitura] dá [os restos mortais] por desconhecido, origem desconhecida, [diz] que a família não reclamou o corpo. Isso é um absurdo”, disse Diogo, responsável pela descoberta do processo, que agora foi colocado em segredo de Justiça.

Cemitério rentável

O ex-deputado afirmou que esta pode ser uma ação para esvaziar o cemitério e possibilitar a venda de sepulturas para novos sepultamentos, com o objetivo apenas de maior arrecadação. “O que tem por trás de tudo isso é uma higienização, é uma limpeza, é uma faxina para reduzir o número de ossadas das paredes do cemitério, das caixas, e aí abrir novas vagas nas sepulturas. Esses cemitérios mais antigos, que são cemitérios congelados, [em] que não cabe mais demanda, passam a ser cemitérios rentáveis [com a eliminação das ossadas].”

Adriano Diogo apontou a intenção de conceder o Cemitério da Quarta Parada à iniciativa privada como uma das motivações para "essa incineração em massa”. Segundo o Serviço Funerário do Município de São Paulo, “a cremação não tem qualquer relação com a concessão dos cemitérios [à iniciativa privada]. Ela é necessária para proteção ao meio ambiente, além de garantir mais espaço para novos sepultamentos.”

A prefeitura argumenta ainda que a cremação por via judicial não é inédita na cidade de São Paulo e que já foi feita no mesmo cemitério em 2005, quando furam incineradas 2.117 ossos após decisão da Justiça.

“Eles [da prefeitura] querem se livrar [das ossadas]. O Serviço Funerário tem um passivo que não podemos continuar. Eles falam que, na gestão [de Gilberto] Kassab, incineraram 2 mil ossadas com autorização judicial. Erro do Kassab”, afirmou o ex-deputado. Segundo Adriano Diogo, entidades de direitos humanos vão recorrer da decisão na Justiça.

Questionada sobre a motivação comercial da incineração, a prefeitura não se manifestou.

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