Os jornalistas que afrontaram a ditadura na epidemia de meningite
Um jornal do interior do Rio Grande do Sul ignorou as ordens dos militares para que escondesse a doença da década de 70, conta o colunista Moisés Mendes
Ministro Paulo Almeida Machado inicia vacinação contra meningite em Niterói, em janeiro de 1975 (Foto: Agência Nacional/Arquivo Nacional)
Por que Basile tinha bronca com o delegado? Porque, diziam, o homem mandava na cidade. Geisel era o presidente. E a PF, poderosa e arbitrária, numa região de fronteira, antes de investigar, prendia quem desafiasse seu comando.
Pouco antes de ser preso, Basile havia cometido outra afronta e desafiado um recado do preposto da ditadura. A mesma PF determinara, por ordem de Brasília, que os jornais não poderiam divulgar nada sobre a epidemia de meningite.
A classe média começava a ser contaminada e morta por uma doença que, na cabeça dos ditadores, atingiria apenas os pobres de São Paulo. Não havia vacina para todos. Os generais faziam o que Bolsonaro faria depois com a pandemia da Covid.
A ordem ao jornal, transmitida por telefone por um agente da delegacia da PF, foi recebida por um repórter de 21 anos. Eu era o repórter e estava ao lado da mesa de Basile quando o telefone tocou.
Um sujeito quase cordial, que se negou a dizer o nome, perguntou pelo chefe da redação, foi informado de que ele não estava e determinou: diga ao seu superior que esta é a ordem da Polícia Federal.
E ditou o recado: nenhuma linha sobre a epidemia. Perguntou meu nome e desligou. O que eu sabia da doença espalhada pelo país era o que a maioria dos jornalistas interioranos também sabia. Quase nada.
Basile chegou logo depois, foi informado da ordem do delegado, reuniu-se com o diretor-geral e dono do jornal, João Afonso Grisolia, e os dois me comunicaram a decisão tomada.
Eu iria participar de um mutirão, para que o jornal saísse no dia seguinte com um encarte de quatro páginas. Sobre a epidemia de meningite.
Por desinformação, por ingenuidade e pela combinação de todas as virtudes e defeitos dos crédulos em tempos de guerra, achei que a afronta parecia normal no ambiente anormal de um país sob ditadura.
Estava errado, assim como muitos dos que foram perseguidos e torturados ou desapareceram e morreram com o autoengano de que havia uma certa normalidade na ditadura. Saíam de casa, iriam apenas depor e sumiam nas masmorras da turma de Brilhante Ustra.
Mas, por precaução, informei aos dois: o homem ficou com o meu nome. Basile e Grisolia disseram que deveríamos ir em frente. Pouco depois, chegaria à redação a informação de que Geisel havia fechado a fronteira para evitar que a epidemia se alastrasse para o Uruguai.
E o jornal saiu no dia seguinte com uma imagem já noturna da avenida da fronteira Livramento-Rivera, feita pelo fotógrafo João David, com uma tarja com a palavra em caixa alta: FECHADA.
Não há dados confiáveis sobre as mortes, mas em 1974 teriam morrido pelo menos 2,5 mil pessoas, principalmente crianças. Mais de 60 mil foram contaminados entre 71 e 76. Em meio à pandemia e à censura, a plateia desafiou a ditadura sem que ninguém soubesse.
(Este texto é uma homenagem a todos os jornalistas interioranos que, sem fama, sem o suporte dos grandes organismos e advogados de defesa da democracia e das liberdades, e também sem medo, enfrentaram os criminosos que tomaram o poder em 64.)
Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.
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