Por que não haverá outro Delfim

“A mediocridade de direita e extrema direita impede que se pense em outro interlocutor assemelhado ao ex-ministro”, escreve o colunista Moisés Mendes

Fonte: Moisés Mendes - Publicada em 13 de agosto de 2024 às 18:08

Por que não haverá outro Delfim

Delfim Netto em entrevista à Reuters em São Paulo 15/7/2013 (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)

Lula conversava com Delfim Netto porque era uma prosa que lhe fazia bem. É perda de tempo debater agora, com Delfim morto, se Lula deveria ou não ter esse tipo de interlocutor, pelo histórico de dissonâncias políticas entre os dois durante a ditadura.

O que importa é que ambos se acertavam e se admiravam e que essa aproximação nos leva a mais uma conclusão sobre o tempo que vivemos. É impossível que algo semelhante se repita mais adiante.

É impensável que daqui a alguns anos alguém da esquerda no governo, que pode ser Fernando Haddad, tenha como interlocutor no café da tarde uma figura do período do bolsonarismo. Alguém de dentro da estrutura ou do entorno do governo de Bolsonaro.

Alguém que pudesse oferecer alguma troca relevante a Haddad sobre algo específico, ou que se transformasse em seu interlocutor pela admiração recíproca de um pela inteligência do outro, como foi o caso de Lula e Delfim.

Por que pensar nisso agora? Para oferecer mais uma contribuição sobre a dimensão e as feições do fascismo bolsonarista no confronto com alguns personagens quase anistiados do pós-64. 

Lula, inimigo da ditadura, conversava como presidente com uma das figuras mais poderosas daquele tempo. Haddad não terá e nem precisa ter chance semelhante.

Porque as figuras do bolsonarismo ultrapassam os limites das concessões a esse tipo de relacionamento. E porque, mesmo superadas as barreiras que avaliam condutas e questões éticas e morais, a mediocridade do bolsonarismo não permitiria interlocução alguma.

Para levantar outra hipótese, é provável que hoje Lula, no terceiro mandato, pudesse conversar com outros personagens civis da origem do golpe de 64, entre os quais Marco Maciel, Severo Gomes, Reis Veloso, Mario Henrique Simonsen, Hélio Beltrão, Aureliano Chaves. E até com empresários golpistas como Mario Amato e Otavio Frias de Oliveira.

Mas é impossível, muito mais do que improvável, que Haddad possa ter interlocutores da turma de Paulo Guedes, Marcelo Queiroga, Sergio Moro, Ernesto Araújo, Milton Ribeiro, Ricardo Salles, Damares Alves, Abraham Weintraub e o véio da Havan.

É impossível que qualquer um deles possa ter uma conversa de dois minutos com alguém da esquerda no poder daqui a alguns anos, mesmo que as sequelas deixadas pela extrema direita viessem a ser parcialmente curadas, o que é inimaginável. 

Não se trata de ver apenas bloqueios objetivos e subjetivos de ordem moral. A conversa seria impossível não só pela índole das figuras, mas pela baixa qualidade. Não há como confrontar nomes da elite civil da ditadura com o que foi a elite bolsonarista no governo e seus arredores.

Lula conversava com Delfim porque lhe fazia bem, e que cada um diga o que quiser sobre a inconveniência dessas conversas. Haddad ou quem estiver no poder mais adiante poderá conversar com as emas do Alvorada, mas não com alguém que tenha sido parte do núcleo grotesco do bolsonarismo.

É uma comparação para dizer apenas que a extrema direita tem graduações, por mais que alguns queiram negar. E que a elite do fascismo se degradou no Brasil em todos os sentidos, principalmente pela queda de qualidade. As mediocridades aperfeiçoaram a extrema direita brasileira.

Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

815 artigos

Por que não haverá outro Delfim

“A mediocridade de direita e extrema direita impede que se pense em outro interlocutor assemelhado ao ex-ministro”, escreve o colunista Moisés Mendes

Moisés Mendes
Publicada em 13 de agosto de 2024 às 18:08
Por que não haverá outro Delfim

Delfim Netto em entrevista à Reuters em São Paulo 15/7/2013 (Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)

Lula conversava com Delfim Netto porque era uma prosa que lhe fazia bem. É perda de tempo debater agora, com Delfim morto, se Lula deveria ou não ter esse tipo de interlocutor, pelo histórico de dissonâncias políticas entre os dois durante a ditadura.

O que importa é que ambos se acertavam e se admiravam e que essa aproximação nos leva a mais uma conclusão sobre o tempo que vivemos. É impossível que algo semelhante se repita mais adiante.

É impensável que daqui a alguns anos alguém da esquerda no governo, que pode ser Fernando Haddad, tenha como interlocutor no café da tarde uma figura do período do bolsonarismo. Alguém de dentro da estrutura ou do entorno do governo de Bolsonaro.

Alguém que pudesse oferecer alguma troca relevante a Haddad sobre algo específico, ou que se transformasse em seu interlocutor pela admiração recíproca de um pela inteligência do outro, como foi o caso de Lula e Delfim.

Por que pensar nisso agora? Para oferecer mais uma contribuição sobre a dimensão e as feições do fascismo bolsonarista no confronto com alguns personagens quase anistiados do pós-64. 

Lula, inimigo da ditadura, conversava como presidente com uma das figuras mais poderosas daquele tempo. Haddad não terá e nem precisa ter chance semelhante.

Porque as figuras do bolsonarismo ultrapassam os limites das concessões a esse tipo de relacionamento. E porque, mesmo superadas as barreiras que avaliam condutas e questões éticas e morais, a mediocridade do bolsonarismo não permitiria interlocução alguma.

Para levantar outra hipótese, é provável que hoje Lula, no terceiro mandato, pudesse conversar com outros personagens civis da origem do golpe de 64, entre os quais Marco Maciel, Severo Gomes, Reis Veloso, Mario Henrique Simonsen, Hélio Beltrão, Aureliano Chaves. E até com empresários golpistas como Mario Amato e Otavio Frias de Oliveira.

Mas é impossível, muito mais do que improvável, que Haddad possa ter interlocutores da turma de Paulo Guedes, Marcelo Queiroga, Sergio Moro, Ernesto Araújo, Milton Ribeiro, Ricardo Salles, Damares Alves, Abraham Weintraub e o véio da Havan.

É impossível que qualquer um deles possa ter uma conversa de dois minutos com alguém da esquerda no poder daqui a alguns anos, mesmo que as sequelas deixadas pela extrema direita viessem a ser parcialmente curadas, o que é inimaginável. 

Não se trata de ver apenas bloqueios objetivos e subjetivos de ordem moral. A conversa seria impossível não só pela índole das figuras, mas pela baixa qualidade. Não há como confrontar nomes da elite civil da ditadura com o que foi a elite bolsonarista no governo e seus arredores.

Lula conversava com Delfim porque lhe fazia bem, e que cada um diga o que quiser sobre a inconveniência dessas conversas. Haddad ou quem estiver no poder mais adiante poderá conversar com as emas do Alvorada, mas não com alguém que tenha sido parte do núcleo grotesco do bolsonarismo.

É uma comparação para dizer apenas que a extrema direita tem graduações, por mais que alguns queiram negar. E que a elite do fascismo se degradou no Brasil em todos os sentidos, principalmente pela queda de qualidade. As mediocridades aperfeiçoaram a extrema direita brasileira.

Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

815 artigos

Comentários

    Seja o primeiro a comentar

Envie seu Comentário

 
NetBet

Envie Comentários utilizando sua conta do Facebook