Pós-honestidade, por Andrey Cavalcante

“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”

Andrey Cavalcante
Publicada em 10 de abril de 2018 às 17:00
Pós-honestidade, por Andrey Cavalcante

“Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”. O pensamento de Fernando Pessoa sintetiza o que há de mais nobre na natureza humana, quando o coração se volta para a conciliação com a intranscendibilidade da razão, não aquela que se constitui no alicerce do pensamento que os filósofos classificam como filho autêntico do século XX, mas da aplicação prática dos ideais democráticos. É desse aparente paradoxo que floresce o ideal. Tal conceito está ocupado, desde a origem, na construção do homo sapiens como ser social. A racionalidade, antes de contestar, tem o poder de potencializar a paixão, na construção do sonho. Do ideal. Está na gênese de instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, que apenas atingiu tão elevado grau de consolidação – apesar de, assim como a democracia, demandar permanente esforço de aprimoramento – pela verdadeira dedicação passional por tantos quantos nos antecederam nesse trabalho. É o que nos orienta e une nacionalmente a todos, em benefício dos advogados e da própria cidadania, que tem, por nós, a garantia de acesso à justiça.

É claro que sempre será possível encontrar obstáculos, especialmente quando o ambiente se permite contaminar por ambições e vaidades na disputa pelo poder. É até compreensível, especialmente porque a vaidade é invariavelmente má conselheira. Ela induz, na direção de atitudes inconseqüentes, aqueles que convence estar, por direito divino, destinados ao poder que ambicionam. Ao inconformismo que disso resulta não importa confrontar escancaradamente aquilo que a OAB vem defendendo ao longo das últimas campanhas eleitorais: a ética na política. Não importa se pelo poder se enterra a lealdade, se trai, se destroem amizades. O problema mais grave é que os efeitos deletérios causados à unidade que a OAB se esforça por construir ao longo de sua história encontram justificativas para quem os fins justificam os meios. Seriam tão somente “efeitos colaterais inevitáveis” na luta pelo poder. Alguma coisa parecida com “acidentes de percurso”. Não são! Não se pode nem mesmo argumentar com a prática democrática, pois que a ética na política que a OAB defende tem obrigatoriamente de ser aplicada no ambiente doméstico. Como pregar ética para os partidos políticos se dela nos desviamos por aqui? Se não fazemos o dever de casa?

O cientista político e professor de Direito Constitucional da USP, Conrado Hübner Mendes, de Época, de quem, com a devida vênia, tomei a liberdade de emprestar o título, observa que a verdade está em baixa na esfera pública. Ela é – garante – vítima de corrupção ativa e passiva: ativa quando alguém produz informação falsa e a dispara; passiva quando alguém a consome e, num reflexo, a replica em suas redes.. A mentira que perdura fora do alcance do radar público pode produzir danos irreversíveis quando a contestação ou o desmentido chegam tarde demais ou quando seu consumidor não está aberto à dúvida. A circulação de notícias falsas, forjadas não para informar, mas para provocar emoções e espasmos, não é mero agravamento de problema antigo, mas patologia nova, cujos remédios ainda estão sendo inventados e testados – acrescenta o autor, para concluir: “Contribuir com esse jogo, de forma ativa ou passiva, é um problema ético”.

Em um bem fundamentado artigo, João Francisco Pinheiro Oliveira lamenta vivenciar, “como todos nós, nossos colegas se distanciando do projeto que nos comprometemos a levar até o final, em nome de seus interesses políticos pessoais. Se fosse somente isso, tudo bem: Todos tem o direito de zelar pelos seus interesses! Somente não se tem o direito de, em nome dos seus interesses, colocar os interesses da Ordem, como instituição, nivelados por baixo”. Ele exorta os colegas a não admitir que se faça “corporativismo às avessas: respeitem a nossa casa, para que o vizinho não a viole”. No mesmo sentido, o colega Márcio Melo Nogueira lembra que “Nós passaremos, a OAB/RO permanecerá, sempre mais forte! Essa é a nossa missão!. Assumimos o compromisso de engrandecê-la, de potencializar suas ações, fazê-la presente na vida do advogado e do cidadão. Vivemos uma época em que a advocacia é maltratada e a cidadania tem direitos fundamentais subtraídos. Tudo sem a menor cerimônia. Mais do que nunca a sociedade e a advocacia precisam de uma OAB altiva! Recorro, enfim – e por oportuno – a Fernando Pessoa para lembrar que “Tudo vale à pena quando a alma não é pequena”.

 

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