Soluções construídas pelo CNJ buscam reduzir judicialização da saúde

Atualmente, são mais de dois milhões de ações sobre saúde, de acordo com dados recentes do Relatório Justiça em Números, do CNJ

Lenir Camimura Herculano Agência CNJ de Notícias/Foto: Luiz Silveira/CNJ
Publicada em 10 de junho de 2020 às 14:15
Soluções construídas pelo CNJ buscam reduzir judicialização da saúde

O direito ao acesso à saúde já é um tema notório em casos da Justiça e o aumento permanente da demanda revelou um dilema para o Judiciário: como tomar decisões que, de fato, vão beneficiar os pacientes, sem desequilibrar o sistema de saúde. Ao longo de sua história, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) busca contribuir para solucionar o impasse e, pelo debate e pela edição de normativos, prover estrutura e ferramentas para que a Justiça possa atender às demandas da sociedade.

Atualmente, são mais de dois milhões de ações sobre saúde, de acordo com dados recentes do Relatório Justiça em Números, do CNJ. A maioria envolve pedidos de acesso a procedimentos e medicamentos, muitos deles previstos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS), mas negligenciados pelo Estado. E outros que nem sempre são cobertos pelo poder público ou mesmo pelos planos de saúde: são, por exemplo, os medicamentos em fase experimental.

Ainda que amparada no acesso ao direito à saúde garantido na Constituição Federal, a judicialização interfere na administração dos recursos de saúde, com impacto no planejamento das três esferas de governo: municipal, estadual e federal. Entre 2008 e 2017, foi registrado aumento de 130% nas ações de saúde, conforme o levantamento do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) “Judicialização da Saúde no Brasil: Perfil das demandas, causas e propostas de solução”. Os dados apontam que o setor de saúde foi responsável por 498.715 processos em primeira instância, distribuídos em 17 tribunais estaduais de justiça; e 277.411 processos em segunda instância, distribuídos em 15 tribunais de justiça estaduais. O impacto no orçamento do Ministério da Saúde foi um aumento de 13 vezes nos gastos em atendimento a demandas judiciais: em 2016, chegou a R$ 1,6 bilhão.

Para o ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês Gonzalo Vecina Neto, a judicialização excessiva é um problema para a execução das políticas públicas de saúde no Brasil. “O Judiciário deve exigir dos outros Poderes as políticas públicas que construam os direitos e deve verificar os resultados, mas não deve propor ou executar políticas, porque, ordinariamente, os recursos são mal utilizados, beneficiando apenas um demandante. A maioria das demandas que chegam à Justiça é fruto da falta ou da má execução de políticas públicas que afetam a vida de milhões de brasileiros”, ressaltou. Ele é membro do Fórum Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde, o Fórum da Saúde, instituído em abril de 2010 para ampliar esforços à efetividade dos processos judiciais e à prevenção de novos conflitos que envolvam a saúde pública e a privada.

As discussões no Poder Judiciário sobre o aumento da judicialização em saúde têm um marco em 2009, quando foram contabilizados em torno de 500 mil processos em todo o país. Uma audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal (STF) reuniu especialistas para discutir esse fenômeno. A partir disso, o CNJ criou um grupo de trabalho para elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas referentes a essas demandas judiciais.

Decidir com embasamento

O primeiro ato aprovado pelo CNJ foi a Recomendação n. 31/2010, que reuniu medidas para subsidiar os magistrados e demais operadores do direito em decisões mais eficientes na solução das demandas sobre assistência à saúde. A recomendação orienta os juízes a ampliar as fontes de informações para concessão de pedidos e envolver a comunidade médica e científica e os gestores públicos na busca de solução.

Foi também em 2010 que o CNJ aprovou a Resolução 107, instituindo o Fórum Nacional da Saúde, com a incumbência de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos. A principal preocupação era estabelecer ferramentas para subsidiar os magistrados com informações técnico-científicas e garantir decisão baseada em evidências.

De acordo com o professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e membro na composição atual do Fórum Giovanni Guido Cerri, era muito importante, à época, que o Judiciário garantisse o acesso a uma saúde justa, mas com decisões conscientes. Seguindo as indicações já consolidadas na Recomendação n. 31/2010, as discussões sobre a formação de Núcleos de Apoio Técnico ao Poder Judiciário (NatJus) ganharam força.

“A criação do NatJus era importante para começar a criar uma consciência do problema da judicialização da saúde no Brasil e que isso precisava mudar e ser racionalizado por critérios técnicos, para decidir se uma ação nessa área era procedente ou não”, afirmou Cerri. A ideia inicial era que os tribunais federais e estaduais celebrassem convênios para disponibilizar apoio técnico de médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas.

O primeiro estado a criar um NatJus foi o Rio de Janeiro, com um projeto-piloto. No início, o TJRJ realizava muitos eventos destinados a discutir as questões de saúde, tanto no setor privado quanto público. “Muitas vezes, os juízes eram criticados, porque concediam uma antecipação de tutela ou liminar e depois tinham controvérsias. O fato era que, quando o juiz dava uma decisão, ele estava respaldado em um laudo médico trazido pela parte autora, indicando determinado tratamento, medicamento ou internação de urgência, por exemplo. O juiz precisava de um respaldo. Foi aí que surgiu a ideia de se criar um corpo técnico isento para auxiliar o magistrado”, explicou a juíza do TJRJ Valéria Bichara.

A magistrada, que fez parte da primeira composição do Fórum Nacional de Saúde, em 2011, disse que essa experiência e as de outros estados foram levadas para o Fórum, que discutiu as implicações de criação dos Núcleos de Apoio Técnico. “Estávamos no processo de construção de um projeto. A participação de todos os envolvidos permitiu que a resolução fosse construída de forma abrangente, podendo ser indicada a todos os tribunais do país e às diversas realidades do Brasil”, contou.

A própria composição do Comitê Executivo Nacional do Fórum contribuiu para o desenvolvimento dos projetos. Formado por representantes do Poder Judiciário, do Poder Executivo, operadores do direito, secretários estaduais e municipais de saúde e médicos, o grupo formulou outros normativos, como a Resolução CNJ n. 238/2016, que estabeleceu a criação dos NatJus nos estados, para oferecer notas técnicas e embasar as decisões dos magistrados, além da criação dos Comitês Estaduais de Saúde, a exemplo do Comitê Nacional. Além disso, o Fórum também realizou Jornadas de Direito da Saúde, em que foram discutidos e aprovados, entre os anos de 2014 a 2019, 103 enunciados – que são contribuições aos juízes sobre como conduzir o julgamento de questões de saúde.

Plataforma Digital

Em 2016, o Fórum assumiu um modelo de projeto mais arrojado, firmando com o Ministério da Saúde um Termo de Cooperação (TC n. 21/2016) que traria a expertise do Hospital Sírio-Libanês para o treinamento das equipes técnicas dos NATs, além de disponibilizar Protocolos Terapêuticos Clínicos (PTC) de vários medicamentos. Já em 2017, o CNJ lançou o projeto e-NatJus Nacional, plataforma digital que reúne notas e pareceres técnicos sobre temas judicializados em Saúde.

A construção do projeto incluiu a realização de audiência pública para discutir com a sociedade brasileira a prestação jurisdicional em ações relativas à saúde. Realizada em dezembro de 2017, a audiência pública deu voz a 30 instituições diferentes, desde gestores públicos, como os secretários municipais e estaduais de Saúde, até associações de pacientes de doenças raras. Em comum, as falas de representantes do Poder Público, da iniciativa privada, dos pacientes, da Academia e do sistema de Justiça abordaram a discrepância entre a demanda e a oferta de saúde no Brasil e as implicações do problema para o conjunto da sociedade.

A operacionalização da ferramenta que iria apoiar juízes nessas decisões foi oficializada em um segundo Termo de Cooperação, firmado com o Ministério da Saúde (TC n. 51/2018) e a participação do Hospital Israelita Albert Einstein, cuja equipe técnica passou a responder, 24 horas por dia, aos pedidos dos magistrados classificados como urgência. A parceria com o Ministério permitiu que o desdobramento dos projetos fosse financiado pelo governo federal, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS). O programa reúne hospitais filantrópicos de excelência apoiadores de melhoria das condições de saúde da população brasileira.

Então supervisor do Fórum e conselheiro do CNJ, Arnaldo Hossepian conta que, em 2018, o sistema de informática foi desenvolvido e, em janeiro de 2020, a plataforma registrou sua milésima nota técnica, baseada em evidências científicas. Promotores e defensores públicos têm acesso a todo esse material, composto a partir da solicitação de um magistrado. “Hoje temos duas frentes atacadas: a jurisdição técnico-científica e o caminho para buscar soluções pela via negociável”, disse. Isso porque, desde 2019, as questões de saúde foram inseridas também no escopo do portal Consumidor.gov, com o intuito de incentivar a conciliação, especialmente junto a operadoras de planos de saúde.

Impactos sobre a judicialização

Os resultados de todo esse trabalho já podem ser contabilizados. Em Tocantins, por exemplo, os dados científicos têm contribuído para a diminuição da judicialização e o aumento dos acordos pré-processuais. O estado possui, além do NatJus estadual, instituído em 2013, dois NatJus municipais, nas cidades de Araguaína e Palmas.

Segundo a coordenadora do Comitê de Saúde de Tocantins, a juíza Milene de Carvalho Henrique, os NATs subsidiam os magistrados e operadores do direito com informações técnicas, resolutividade, racionalidade, capacitação e efeito pedagógico para os consultantes: atributos valiosos para a desjudicialização da saúde. “As solicitações pré-processuais são provenientes da Defensoria Pública e do Ministério Público, que buscam subsídios técnicos antes de ingressar com o processo. Todas as notas técnicas são respondidas com pesquisa do material disponível na plataforma nacional, o e-NatJus. Todos os técnicos possuem acesso e já foram capacitados em oficina para elaboração de notas técnicas, ministrada pelo Hospital Sírio-Libanês”, explicou.

Apenas em 2019, os três Núcleos de Tocantins expediram um total de 3.757 notas técnicas. Desses, 2.645 foram emitidas pelo NatJus Estadual, das quais 1.526 emitidas na fase pré-processual e 1.119, na fase judicial. Além disso, houve redução de 72% no ingresso de novos casos nos anos de 2018 e 2019. “Com o passar dos anos, as consultas foram crescendo e os juízes perceberam a importância da informação técnica para as demandas em saúde. No ano de 2019, tivemos um índice de 95% dos magistrados de Tocantins consultando as notas técnicas, o maior até agora”, ressaltou Milene.

Os resultados apontam que as medidas definidas pelo CNJ a respeito da saúde produziram um Judiciário mais capacitado. Segundo a atual supervisora do Fórum Nacional de Saúde, a conselheira do CNJ Candice Lavocat Galvão Jobim, o fortalecimento dos comitês estaduais deve ser um dos focos de atuação do Fórum. “Iniciaremos inserindo critérios de avaliação no Prêmio CNJ de Qualidade que meçam a efetiva atuação do comitê de cada estado”, disse ela.

O foco é avaliar o empenho do tribunal em criá-lo e mantê-lo em funcionamento com efetividade, mediante encontros regulares e espaço adequado, permitindo assim efetivo diálogo interinstitucional. “Também vamos manter o trabalho até então realizado pelo Comitê Nacional no tocante ao aprimoramento técnico-cientifico das decisões judiciais, buscando sensibilizar todos os magistrados que julgam demandas da saúde a utilizarem os NatJus locais e o e-NatJus Nacional antes de prolatarem suas decisões”, ressaltou a conselheira Candice.

Para ela, a participação do CNJ é necessária diante da grande quantidade de processos referentes ao tema Saúde em tramitação no Judiciário brasileiro e, consequentemente, do impacto das inúmeras decisões judiciais sobre as políticas, a gestão e o orçamento público. “Fez-se necessária a participação do CNJ para tentar racionalizar o trabalho do Judiciário nessa questão tão delicada que é a saúde pública e permitir aprimorar a discussão. É preciso obter soluções por meio de diálogo entre os operadores do direito, os médicos e os gestores da saúde, unidos na busca de soluções adequadas para o enfrentamento do problema da judicialização da saúde”, afirmou.

Este texto faz parte da série comemorativa dos 15 anos do CNJ. Conheça aqui outros momentos dessa história

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