Vera Magalhães e a lógica do escorpião

Quando o fascismo incendeia a floresta, os anfíbios democratas ajudam os aracnídeos de ideologia peçonhenta a alcançarem a margem segura da civilização

Guilherme Scalzilli
Publicada em 26 de setembro de 2022 às 11:11
Vera Magalhães e a lógica do escorpião

Vera Magalhães (Foto: Reprodução / TV Band)

Questionada no Twitter a respeito da ausência de Lula no programa Roda Viva (TV Cultura), a âncora Vera Magalhães respondeu, em dois de abril de 2020:

Olha só: ele foi convidado no ano passado, antes da minha gestão. Quis aprovar a bancada. Diante do não, se recolheu. Não vai usar o programa para retomar uma polarização nefasta ao país e que é tudo que o bolsonarismo quer.

Lula não é player da crise de covid-19. É um condenado em prisão domiciliar. Por isso e por ter mais de 60 tem de ficar em isolamento. Emular esse espantalho político é tudo que Bolsonaro quer para cortina de fumaça dos seus erros.

Se afoitos e ingênuos querem ser o sapo da travessia do escorpião, o Roda Viva não será essa jangada. Vamos seguir fazendo jornalismo de serviço e relevância, ouvindo quem tem o que dizer nesse momento grave do país.

Tiremos logo o bode pandêmico da sala. Poucos dos entrevistados pelo Roda Viva naquele ano tinham ligação profissional com áreas relacionadas à Covid. Menos da metade ocupava cargo público de qualquer natureza. A lista incluiu Ciro Gomes, Simone Tebet e João Santana (!), prestando serviço mais ao sonho da “terceira via” eleitoral do que ao contribuinte.

A estreia de Magalhães no programa ocorrera três meses antes das mensagens acima, tendo Sérgio Moro como convidado. Os anfitriões formaram uma bancada amistosa para recebê-lo. Esnobaram Glenn Greenwald, cujas reportagens haviam originado o então recente escândalo da “Vaza Jato”, que já anunciava uma reviravolta no cenário político nacional.

Alguém com a índole autocrática e vaidosa de Moro não participaria do Roda Viva, naquele contexto, sem vetar nomes. A direção jornalística da emissora (já a cargo de Leão Serva) antecipou-se e tornou o veto desnecessário. Livrou de constrangimentos o artífice do golpe judicial que permitira a ascensão do fascismo ao poder. Um ministro do governo Bolsonaro.

O episódio ajuda a entender o viés ideológico dos textos de Magalhães. A falsa equivalência entre Lula e Bolsonaro e a adjetivação negativa do ex-presidente com base na sentença de Moro fazem parte do discurso típico do lavajatismo. A sugestão de manter o petista fora do jogo político (“isolado”) repete o objetivo confesso do ex-juiz e de seus cúmplices.

Como se não bastasse, Magalhães ironizou a idade de Lula, distorceu sua situação jurídica e usou-a para torná-lo indigno do debate público. Eximiu Bolsonaro de culpa, reduzindo seus crimes a “erros” e naturalizando a ideia de que ele apenas reage ao polo contrário. Em suma, usou a retórica fascista habitual para desqualificar uma liderança do campo democrático.

Dois anos depois, o “espantalho político” de Magalhães é novamente o favorito disparado na corrida sucessória. A “polarização nefasta”, que Lula jamais deixou de encabeçar, sintetiza um anseio majoritário pelo fim da tragédia parida no sucesso midiático da Lava Jato. A vitrine do Roda Viva não se mostrou capaz de alavancar seus “players” de estimação.

Eis que a metáfora com a fábula do sapo e do escorpião ganha aspecto premonitório. No final das contas, os afoitos e ingênuos estrebuchando no rio são Magalhães e Serva, ferroados pelos bichos paridos do arbítrio que ambos legitimaram. Num requinte de humilhação, recebem a (merecida) solidariedade que negaram aos desafetos injustiçados.

Mas a narrativa edificante serve também para os progressistas que se lançam no resgate dos colegas em apuros. Quando o fascismo incendeia a floresta, os anfíbios democratas ajudam os aracnídeos de ideologia peçonhenta a alcançarem a margem segura da civilização. Basta começar o governo Lula e a natureza recolocará esse pacto ilusório nos devidos termos.

Guilherme Scalzilli

Historiador e escritor

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