O fim da prisão especial baseada no grau de formação

Ao menos no tocante ao tratamento diferenciado que se dava aos “donos do conhecimento”, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva

Marco Aurélio Pinto Florêncio
Publicada em 09 de maio de 2023 às 09:12
 O fim da prisão especial baseada no grau de formação

Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie

No dia 31 de março de 2023, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento virtual da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 334/DF, de Relatoria do Ministro Alexandre de Moraes. Na ocasião, os Ministros do Pretório Excelso declararam, à unanimidade, que a Constituição Federal de 1988 não recepcionou o artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal, o qual garantia aos diplomados de nível superior que o recolhimento cautelar, decorrente de uma prisão processual, fosse realizado em “prisão especial”.

Inicialmente, é preciso destacar que a prisão especial se trata de uma prerrogativa, criada pelo legislador de 1941, sob o pretexto de “suavizar” os efeitos indeléveis do encarceramento provisório de determinadas pessoas que desempenham certas funções jurídico-políticas na sociedade, para que o recolhimento provisório ocorra em espaço distinto da prisão comum.

Assim, de acordo com o artigo 295, incisos I a XI do Código de Processo Penal, fazem jus à prisão especial os Ministros de Estado; Governadores ou Interventores de Estados ou Territórios, o Prefeito do Distrito Federal (e seus respectivos secretários), os Prefeitos municipais, os Vereadores e os Chefes de Polícia; os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados; os cidadãos inscritos no “Livro de Mérito”; os Oficiais das Forças Armadas e os Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; os Magistrados; os Diplomados por qualquer das faculdades superiores da República; os Ministros de confissão religiosa; os Ministros do Tribunal de Contas; os cidadãos que já exerceram efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função; bem como os Delegados de Polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos.

Mas não só. Também fazem jus à prisão especial os Dirigentes de Entidades Sindicais e o Empregado do Exercício de Representação Profissional ou no Cargo de Administração Social; os Pilotos de aeronaves mercantes nacionais ; os Servidores do Departamento Federal de Segurança de Pública, que exerçam atividade estritamente policial; os Funcionários da Polícia Civil da União, dos Estados, Distrito Federal e Territórios Federais; os Magistrados; os Membros do Ministério Público; os Defensores Públicos e os Advogados.

Neste contexto, convém registrar que o princípio da isonomia, expressamente garantido por força do artigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, “veda as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas”, sem impedir, por outro lado, o “tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam”, por ser esta uma “exigência tradicional do próprio conceito de Justiça”. Destarte, há violação ao princípio da isonomia somente “quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito”.

Trocando em miúdos, o tratamento isonômico busca afastar o velho brocardo “dois pesos e uma medida”, garantindo, por outro lado, que, diante de “duas medidas”, sejam aplicados “dois pesos”, a fim de que cada qual seja tratado na medida de sua desigualdade. Foi com base nesse raciocínio que, em 31 de março de 2023, o Supremo Tribunal Federal concluiu que o artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Afinal, embora o ordenamento jurídico pátrio preveja um tratamento diferenciado para determinadas pessoas que, por circunstâncias específicas, se encontram em situação de maior e mais gravosa exposição ao convívio geral no cárcere, a exemplo dos Magistrados, Advogados, Membros do Ministério Público e Delegados de Polícia, que podem ser alvos de retaliações de outros presos, a mera obtenção de um diploma de nível superior não autoriza o encaminhamento à prisão especial, sob pena de se permitir uma discriminação injusta e elitista na sociedade, baseada apenas no grau de formação da pessoa.

Todavia, se a prisão especial tem como objetivo proteger a função e a integridade daqueles que, pelo simples exercício de suas atividades, se colocam em situação de maior vulnerabilidade no cárcere, não faz sentido aplicar tal prerrogativa com base, apenas, no nível de escolaridade do indivíduo, especialmente numa sociedade como a brasileira, em que o acesso ao Ensino Superior, na prática, ainda é extremamente limitado.

Nesse sentido, inclusive, foram as precisas e acertadas ponderações do Ministro Alexandre de Moraes, apresentadas no julgamento da ADPF n.º 334/DF:

Não me parece existir qualquer justificativa razoável, à luz da Constituição da República, que seja apta a respaldar a distinção de tratamento a pessoas submetidas à prisão cautelar, pelo Estado, com apoio no grau de instrução acadêmica, tratando-se de mera qualificação de ordem estritamente pessoal que, por si só, não impõe a segregação do convívio com os demais reclusos. A meu ver, a previsão do direito à prisão especial a diplomados em ensino superior não guarda nenhuma relação com qualquer objetivo constitucional, com a satisfação de interesses públicos ou à proteção de seu beneficiário frente a algum risco maior a que possa ser submetido em virtude especificamente do seu grau de escolaridade.

Trata-se, na realidade, de uma medida estatal discriminatória, que promove a categorização de presos e que, com isso, ainda fortalece desigualdades, especialmente em uma nação tão socialmente desigual como a nossa, em que apenas 11,30% da população geral possui ensino superior completo. Trazendo um dado ainda mais alarmante, tem-se que somente 5,65% dos pretos ou pardos conseguiram graduar-se em uma Universidade, tudo de acordo com o último Censo do IBGE, em 2010, único disponível devido à pandemia. 

[...] Ao permitir-se um tratamento especial por parte do Estado dispensado aos bacharéis presos cautelarmente, a legislação beneficia justamente aqueles que já são mais favorecidos socialmente, os quais já obtiveram um privilégio inequívoco de acesso a uma Universidade.

A separação de presos provisórios por nível de instrução contribui para a perpetuação de uma inaceitável seletividade socioeconômica do sistema de justiça criminal e do Direito Penal, tratando-se de regra incompatível com o princípio da igualdade e como próprio Estado democrático de Direito.

Neste contexto, a conclusão apresentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF n.º 334/DF, no sentido de que prerrogativa prevista no artigo 295, inciso VII, do Código de Processo Penal não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, exsurge acertada não apenas do ponto de vista sistemático do ordenamento jurídico pátrio, mas, sobretudo, de uma perspectiva social.

Como bem concluiu o Ministro Relator Alexandre de Moraes, a extensão da prisão especial aos detentores de diploma de ensino superior “caracteriza verdadeiro privilégio que, em última análise, materializa a desigualdade social e o viés seletivo do direito penal, e malfere preceito fundamental da Constituição que assegura a igualdade entre todos na lei e perante a lei”. 

Destarte, o julgamento da ADPF n.º 334/DF, além de jurídico-socialmente adequado, como uma resposta e aviso à sociedade brasileira: os tempos do bacharelismo chegaram ao fim. Ao menos no tocante ao tratamento diferenciado que se dava aos “donos do conhecimento”, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva.

Sobre a Universidade Presbiteriana Mackenzie

A Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) está na 71a posição entre as melhores instituições de ensino da América Latina, segundo a pesquisa Times Higher Education 2021, uma organização internacional de pesquisa educacional, que avalia o desempenho de instituições de ensino médio, superior e pós-graduação. Comemorando 70 anos, a UPM possui três campi no estado de São Paulo, em Higienópolis, Alphaville e Campinas. Os cursos oferecidos pelo Mackenzie contemplam Graduação, Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, Pós-Graduação Especialização, Extensão, EaD, Cursos In Company e Centro de Línguas Estrangeiras.

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