A marcha autoritária

"O presidente da República está procurando diminuir e se possível eliminar o sistema de freios e contrapesos próprios da nossa organização política", escreve o professor de Ciência Política da USP André Singer

André Singer
Publicada em 01 de junho de 2020 às 11:13

(Foto: Divulgação)

(Publicado no site A Terra é Redonda)

A decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes de pedir busca e apreensão em endereços de dezessete envolvidos na investigação sobre fake news, resultando em vinte e nove ações de busca e apreensão representa uma aceleração importante na conjuntura político-institucional. Os mandados, emitidos no dia 27 de maio, vêm na esteira de uma sequência de acontecimentos graves.

O primeiro fato preocupante é o conteúdo da reunião ministerial do dia 22 de abril, divulgado por ordem do ministro Celso de Mello exatamente um mês depois, no dia 22 de maio. O vídeo tornou pública uma série de fatos inquietantes que indicam uma marcha autoritária. Entre outras, há uma fala do Presidente da República na qual ele se diz favorável a armar a população para resistir à orientação de isolamento social que governadores e prefeitos estão implantando por conta da disseminação do coronavírus, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde.

Na sequência, na terça-feira, 26 de maio, a Polícia Federal fez no Rio de Janeiro uma operação de busca e apreensão no Palácio Guanabara, residência oficial do governador Wilson Witzel. Independente do fato de que possa ou não ter havido desvios, o fato é que muitos analistas interpretaram esta ação como o primeiro resultado da mudança feita recentemente na Polícia Federal, particularmente a do Rio de Janeiro, pelo Presidente da República.

Sinaliza-se assim a utilização da Polícia Federal contra um adversário político, pois o governador Witzel se tornou recentemente um opositor do Presidente da República.

Por fim, temos a decisão do ministro Alexandre de Moraes de investigar por meio de busca e apreensão uma série de personagens, empresários, blogueiros, etc. ligados ao Presidente da República. Fato este que constitui um ponto a mais nessa escalada de tensão que está envolvendo os poderes constitucionalmente estabelecidos no Brasil.

O substrato dos conflitos

Trata-se, na verdade, de um processo que decorre da tentativa do Presidente da República de alargar o seu próprio poder, procurando dissolver o balanço próprio da democracia entre poder e contrapoder. Ele está procurando diminuir e se possível eliminar o sistema de freios e contrapesos próprios da nossa organização política encarnados na independência do poder judiciário e do poder legislativo.

Jair Bolsonaro se insurge contra as limitações impostas ao poder executivo pelo judiciário e pelo legislativo. Trata-se, no entanto, de um movimento que é recíproco porque o executivo também deve limitar o poder do legislativo e do judiciário. Este sistema foi inventado pelos norte-americanos no século XVIII (e o mundo inteiro acabou adotando-o) visando a marcha para a ditadura. Ele constitui, portanto, uma forma de garantir a democracia. O que estamos assistindo, assim, é a tentativa dos dois poderes, o judiciário e, até certo ponto, o legislativo, de resistir a uma série de ações que se encaminham no sentido de um alargamento do poder executivo.

(Artigo estabelecido a partir de entrevista concedida a Gustavo Xavier na rádio USP.)

André Singer

Professor titular do departamento de Ciência Política da USP

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