Artigo: Ameaça ao direito à vida, por Felipe Santa Cruz
As mudanças propostas significam um retrocesso nos avanços obtidos nos últimos anos
Sem qualquer estudo técnico que justifique as medidas, e contrariando todas as evidências científicas, o presidente Jair Bolsonaro entregou pessoalmente ao Congresso o Projeto de Lei nº 3267, que, na essência, significará leniência com o descumprimento das leis de trânsito.
As mudanças propostas significam um retrocesso nos avanços obtidos nos últimos anos, com o aperfeiçoamento da legislação, que tornou mais rígida a punição para infrações cometidas por motoristas e colaborou para uma importante diminuição da mortalidade no trânsito.
Mesmo com essa evolução, em 2017 mais de 35 mil brasileiros perderam a vida em acidentes de trânsito. Estamos longe de alcançar a meta estabelecida pela ONU em 2011, quando foi lançada a campanha “Década de Ação pela Segurança no Trânsito”, de não exceder o número de 19 mil vítimas fatais por ano em 2020.
Além de medidas que já recebem ampla rejeição da sociedade, como o fim da multa para quem transporta crianças sem a cadeirinha, uma proposta em especial deve merecer atenção e debate aprofundado no Congresso Nacional: a extinção da exigência de exames toxicológicos periódicos para motoristas de caminhões, ônibus e vans.
Em 2018, num seminário na ONU, a experiência brasileira com o exame toxicológico de larga janela de detecção para motoristas profissionais foi analisada em um congresso intitulado “The use of technology to promote road safety: brazilian experience”. Tive a oportunidade, como presidente da OAB/RJ, de participar do evento, promovido pela Missão Brasileira nas Nações Unidas e pelo ITTS (Instituto de Tecnologias para o Trânsito Seguro), que contou com palestras de especialistas do Brasil e dos Estados Unidos, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Os resultados desde a implantação do teste, em março de 2016, são muito significativos: mais de 2 milhões (ou 30%) dos motoristas não renovaram suas carteiras de habilitação para evitar o exame, e outros 200 mil foram reprovados (70% por uso de cocaína). Segundo a Polícia Rodoviária Federal, a adoção do exame foi identificada como a principal causa da redução de 34% dos acidentes com caminhões e de 45% com os ônibus.
A população brasileira certamente entendeu bem o risco do projeto para sua segurança. Pesquisa realizada pelo Ibope, em junho passado, demonstra que ampla maioria é a favor dos exames toxicológicos para motoristas. O estudo mostra que, entre os 2.002 entrevistados, em 144 municípios, 85% apoiam que os motoristas profissionais reprovados em exames toxicológicos tenham suas carteiras de habilitação suspensas até realizarem novo teste que comprove que estão livres de drogas.
Que justificativa pode haver para retroceder em uma política pública que tem apoio popular e que em tão pouco tempo representou um avanço tão importante, que salvou tantas vidas?
Não se trata, em absoluto, de um suposto conflito entre o interesse público, de salvar vidas, e o interesse privado, ou a “liberdade individual” de não se submeter ao exame e continuar a usar drogas. Inexiste o direito e a liberdade de se tornar instrumento de morte. O direito à vida, esse sim, está acima de todos os outros.
Se aprovado, esse dispositivo do projeto de lei colocará ainda mais em risco a vida dos próprios motoristas, frequentemente submetidos à baixa remuneração, ao pagamento de salário por produção e à inexistência de controle da jornada de trabalho – além do óbvio perigo representado para todos que circulam em estradas e vias urbanas.
O projeto de lei, da forma como foi apresentado, significará mais mortes e menos segurança. E um retrocesso no caminho que vinha sendo trilhado para garantir, na prática, o disposto no artigo 5º da nossa Constituição: a garantia da inviolabilidade do direito à vida.
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