Bolsonaro quer o caos
O que ele fala e faz tem sempre o objetivo de criar algum tipo de confusão ao seu redor.
Bolsonaro é o mensageiro do caos. O que ele fala e faz tem sempre o objetivo de criar algum tipo de confusão ao seu redor. Para muitas pessoas é difícil aceitar que o caos possa ser o móvel da ação de um presidente da república; por isso procuram atribuir um sentido diferente àquilo que ouvem e vêem. Quando Bolsonaro diz que ele foi escolhido porque era o pior, não é falha de comunicação. Ele quer dizer dizer isso mesmo. Qualquer outra pessoa, agindo racionalmente, tentaria esconder essa percepção de que é o pior, e se esforçaria para demonstrar sua capacidade para resolver problemas.
As pessoas olham para Bolsonaro e querem compreender seus atos como se ele fosse racional. As análises que partem dessa premissa não chegam a uma conclusão capaz de explicar os fatos. Ele é movido pela confusão e pelo confronto. Com a afirmação de que ele é o pior, Bolsonaro de pronto estabelece um confronto com todos os que o escolheram: não foi ele quem escolheu o pior, foram os outros. A partir daí ele transforma essa aparente desvantagem de ser o pior numa vantagem. Pois o que esperar do pior? Se der errado, a culpa não é minha, é de quem queria esculhambar a velha política escolhendo o pior. É isso que ele diz.
Bolsonaro não mente quando fala essas coisas, ele apenas embaralha as palavras. Isso parece tão caótico para uma mente racional, que tende a reelaborar aquilo que parece um absurdo, acabando por falsear o que de fato Bolsonaro quis dizer. Seguindo na linha de raciocínio de sua mente caótica, o problema não tem solução do ponto de vista lógico. E então surge a explicação mística: para o pior ter sido o escolhido, deve ter havido a intervenção de Deus. Assim, Bolsonaro passa a ser o ungido do Senhor. E o governo dele se transforma numa missão, que não tem nada a ver com a arte de governar para resolver problemas.
A frase de ter sido escolhido o pior não é de longe o pior que ele disse e fez ao longo da vida. Em toda a sua trajetória de vida pública conhecida, Bolsonaro manteve essa coerência de provocar confusão e caos.
Durante o frágil governo Sarney, o tenente Bolsonaro, junto com outros oficiais descontentes com a abertura democrática, para demonstrar insatisfação sobre o índice de reajuste salarial do Exército, bolaram um plano para explodir bombas em quartéis do Exército e outros locais do Rio de Janeiro, como na principal adutora de água da capital fluminense. Ao invés de punição, os generais passaram a mão na cabeça de Bolsonaro, decerto imaginando que assim teriam menos problemas. Deram o aumento salarial e puseram Bolsonaro para fora do Exército com o posto de capitão. É daquelas situações anômalas em que o sujeito é punido recebendo a aposentadoria aos 33 anos de idade.
A confusão causada com o plano terrorista deu fama e prestígio a Bolsonaro. “Eu nem pensava em entrar na política, mas isso me ajudou porque fiquei conhecido e então eu fui eleito no ano seguinte”, declarou para a imprensa em 2014. No ano de 1988, Bolsonaro foi eleito vereador no Rio de Janeiro com o voto de policiais e militares e seus familiares. Depois disso elegeu-se deputado federal, cargo que ocupou durante 26 anos.
Depois da expulsão do Exército, Bolsonaro passou a vocalizar os interesses das milícias que tinham surgido nas periferias do Rio de Janeiro em consequência da repressão da ditadura contra a população pobre. O conflito tinha como centro o direito do povo pobre não ser expulso dos seus locais de moradia por causa do avanço da especulação imobiliária. Milicianos e integrantes da ditadura tinham criado uma identidade comum em relação ao exercício do poder da violência contra as populações vulneráveis. Trabalharam em parceria para a expulsão dos pobres dos seus locais de moradia. Um pouco antes de sua morte, Geisel falaria dos adversários do fim da ditadura: “há muitos dizendo: ‘Temos que dar um golpe!” E emendava: “Não é só o Bolsonaro, não!”.“Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é completamente fora do normal, inclusive um mau militar“.
Durante toda a sua carreira política como deputado, Bolsonaro faria a defesa pública das milícias. Elas eram apresentadas como auxiliares das forças de segurança pública, o que representava para as milícias proteção política e transferência de prestígio. Posteriormente, os filhos de Bolsonaro também assumiriam essa função de exaltação da ação saneadora das milícias para garantir a segurança das comunidades pobres. Toda vez que Flávio Bolsonaro concedia menção honrosa a um miliciano na Assembleia Legislativa, estava na verdade transferindo prestígio e poder político. Como contrapartida, o clã Bolsonaro recebia votos e dividendos financeiros.
Durante trinta anos Bolsonaro pregou ódio e intolerância contra negros, gays, mulheres, índios. Negros eram pesados em arrobas como se fossem gado, homens tinham o direito de escolher o tipo de mulher que merecia ser estuprada (e isso podia ser bradado da tribuna do congresso), gays eram tratados como pervertidos que mereciam ser tratados a porrete, índios não mereciam um centímetro a mais de terra porque não geravam riquezas para os brancos, a minoria tinha que se submeter à maioria se não quisesse ser eliminada. E ele, Bolsonaro, era o porta voz dessa maioria formada por “pessoas de bem”, uma definição artificial inventada para dar um verniz civilizado para justificar a barbárie.
Desde sempre, o principal inimigo do Bolsonaro foi a esquerda. Porque os comunistas eram os inimigos que justificavam a existência da ditadura. Porque o comunismo – definição bastante abrangente na visão de Bolsonaro – se identificava com a luta daqueles segmentos que Bolsonaro fazia questão de humilhar e desprezar. É contra a esquerda que Bolsonaro faz os entusiasmados discursos a favor da ditadura, das torturas, da matança dos trinta mil e da necessidade da guerra civil. É por causa desse inimigo principal que Bolsonaro vai escolher aquele que seria seu grande ídolo: um crápula que torturava mulheres enfiando ratos e insetos em suas vaginas e que trazia seus filhos pequenos para assistir o suplício de suas mães.
Por que Bolsonaro escolheu um ser tão abjeto como ídolo? Porque Ustra é a representação do terrível vingador capaz de infligir ao inimigo os piores flagelos. A tortura para Ustra não é um meio, mas um fim. Ele não tortura porque precisa, mas porque encontrou nisso uma forma de realização. E esse prazer é tanto maior quanto pior for o inimigo. O que pode ser pior para um sujeito desses do que uma mulher que luta sem pedir licença ao homem e ainda se identifica com a causa dos comunistas? Bolsonaro demostra, com o gesto, o quão longe está disposto a ir para subjugar e aniquilar os que insistem em afrontar o poder do dinheiro branco, que é essa nova classe inventada com o famigerado nome de “cidadãos de bem”.
Durante trinta anos, Bolsonaro dedicou-se a propagar discursos de ódio e intolerância. Fez isso e nada mais. Nunca se empenhou na resolução de algum problema. Sempre deixou claro que não acredita no diálogo nem nos valores da convivência democrática. Apesar disso, teve êxito financeiro e político. Foi eleito sete vezes deputado antes de virar presidente. Trouxe três filhos para a vida política, um senador, um deputado federal e um vereador, compartilhando todos eles a mesma visão tosca sobre o mundo e a vida e sociedade. A visão de mundo da família Bolsonaro é simbolizada pela escolha de Olavo de Carvalho como seu tutor intelectual e espiritual. Trata-se um astrólogo que vive de polêmicas fúteis, que defende o terraplanismo, despreza a educação e o conhecimento científico, proclama-se filósofo apesar de não ter concluído o ensino médio, e não consegue falar mais de duas frases sem fazer alguma alegoria pornográfica.
As queixas contra as ofensas de Bolsonaro nunca deram em nada. Se antes eram os generosos generais que o puniam com promoção e aposentadoria, agora eram seus pares e juízes que passavam a mão em sua cabeça. Afinal de contas, Bolsonaro não ofendia ninguém que fosse da elite. As pessoas que tinham sido vítimas dos ataques de Bolsonaro eram transformadas em vilãs. Essa manipulação dos fatos para transformar o agressor em vítima é uma marca do clã Bolsonaro. A família se solidarizou com a morte de MC Reaça. Nenhum deles falou uma palavra sobre a mulher grávida que MC agrediu de forma brutal antes de se matar.
Bolsonaro acredita que o mundo funciona na base da manipulação. Ele manipula as pessoas para terem raiva, pena e medo. A reação a esses sentimentos é irracional, operando sempre a favor do manipulador. Numa parte da sociedade Bolsonaro provoca raiva. Ele recebe ataques como resposta. Daí ele manipula uma outra parcela para que tenha pena dele; ele chora indignado, vítima de um sistema hostil que não quer a vitória do bem. E então aparecem as mensagens nas redes sociais para fazer jejum e correntes de oração a favor do Bolsonaro.
O sentimento que Bolsonaro melhor explora é o medo. Ele mesmo disse que as pessoas só respeitam aquilo que temem. Melhor que ninguém ele sabe infundir medo nas pessoas, amaçando-as com visões terríveis. São venezuelanos catando comida nos lixões, mulheres esquerdistas andando com os peitos de fora, defecando nas ruas, holandeses masturbando crianças de sete anos. É grotesco, mas funciona para uma boa parte da sociedade. É assim que a mente manipuladora funciona. O manipulador não fica esperando ser pego na contradição. Antes que isso aconteça, ele já inventou outras variantes, de modo que é impossível alcançá-lo por meio de métodos racionais.
Bolsonaro é incapaz de falar para o conjunto da sociedade porque isso implicaria que ele acreditasse na racionalidade e na força do diálogo. Ele não acredita nem disfarça. Quando propõe algo para algum segmento, ele busca na verdade afrontar outros segmentos que são contrários à proposta que está apresentando. Bolsonaro não se move para atender às demandas da sociedade para encontrar soluções, porque isso não gera caos. Ele se move pela busca do confronto, onde é possível a instalação do caos.
Teoria conspiratória? Má vontade com a formação intelectual deficiente de Bolsonaro? Não, antes fosse. O que se reproduz aqui é a sua vida pública e o seu comportamento. Foi o que ele fez e faz. Ele sempre provocou caos e confusão em torno de si. Nunca alguma autoridade colocou qualquer obstáculo a sua atuação. Hoje ele tem a convicção de que sempre foi assim, sempre deu certo e é assim que tem de ser. É assim que vai ser.
Bolsonaro continua sendo um manipulador contumaz. De manhã aparece choroso e triste, de tarde ele ataca os inimigos, de noite ele mostra a humildade de um ungido de Deus. Há uma só constante em todas as fases de sua manipulação: o uso da violência – esse é o papel das armas – como único método confiável para que as coisas se resolvam a sua maneira.
Bolsonaro levou para o Planalto a estratégia do caos. Seus ministros foram escolhidos a dedo para isso. Eles se esforçam para produzir resultados inversos aos que seriam esperados de suas pastas. O ministro responsável pela arrecadação de tributos defende a redução da carga tributária para 20%, o que tiraria R$ 900 bilhões POR ANO de receitas das diversas esferas governamentais. O ministro da educação é o seu principal inimigo. O ministro das relações exteriores faz guerra comercial contra os principais parceiros comerciais do país. O ministro do meio ambiente tem pressa em destruir o ambiente. A ministra da agricultura bate todos os recordes na liberação de agrotóxicos para envenenar os alimentos que consumimos.
Há uma concordância essencial das elites brasileiras com essa concepção de mundo do Bolsonaro. Apenas desejariam que ele fosse mais educado e dissimulado na forma de expô-la. Por isso permitem que ele prossiga. Mesmo não sendo um membro original da elite instruída e endinheirada, Bolsonaro foi aceito no clube por representar seus interesses, contrapostos às necessidades dos milhões de pobres. A elite dorme tranquila e não se preocupa com os sonhos ditatoriais de Bolsonaro.
Mas Bolsonaro não consegue dormir sem uma arma ao lado. Ele tem pesadelos e chora porque o inimigo o espreita. O poderoso inimigo corrói o tecido social com ideais inaceitáveis. Bolsonaro persegue em sonhos a guerra civil para matar uns trinta mil, terminando o serviço que a ditadura deixou pela metade. Mas a guerra somente se tornará realidade se o caos levar o país ao abismo.
Bolsonaro pode parecer tosco. Mas ele faz cálculos. Para testar a autoridade da hierarquia das Forças Armadas, seu guru da Virgínia passou semanas humilhando os principais generais do exército. Qual foi a reação nas Forças Armadas? Nenhuma. O que deu a Bolsonaro a certeza de que não precisa se preocupar com os generais. O sonho dele é comandar pessoalmente o exército na guerra santa contra os comunistas, que certamente estarão à frente do povo desesperado quando tudo tiver sido destruído. Para isso, Bolsonaro precisa de um exército de novo tipo, sem disciplina, sem hierarquia, sem generais com autoridade sobre a tropa, sem intermediários, um exército enfim, capaz de qualquer coisa, inclusive de lutar ombro a ombro ao lado das milícias. As elites reacionárias e covardes, essas o Bolsonaro sabe que estarão a seu lado, desde que do outro lado esteja o povo pobre e desesperado.
Tudo isso foi dito, tudo isso está em curso. Mas os que precisam ouvir se fazem de surdos; os que precisam ver se fazem de cegos; os que precisam demonstrar coragem se fazem de covardes.
Enquanto isso a economia naufraga, pobres não brancos são mortos aos milhares, um exército crescente de desempregados olha o futuro com desesperança, as milícias se armam até os dentes, escolas são destruídas para que mais pessoas possam ser encarceradas. As instituições se desestabilizam, mas convém que se acredite que isso faz parte da normalidade. As altas autoridades da república confraternizam com o presidente que sonha com uma ditadura de novo tipo. Brindam e sorriem para os fotógrafos, mais preocupados em sair bem na foto do que com os rumos do presente que nos assombra. Parecem conformados com a ideia de que estão numa festa de palhaços, e que numa festa dessas a melhor coisa a fazer é pular e dançar como se palhaços fossem.
Ou barramos Bolsonaro com seu plano de construção do caos, ou corremos o risco de nossos filhos e netos aprenderem nos livros de história que fomos palhaços quando devíamos ter sido sérios. Que fomos covardes quando devíamos ter tido coragem. Que fomos massacrados por alguém que desprezávamos como sendo um palhaço que tinha apenas a função de oferecer diversão. E tardiamente descobrimos que tínhamos sido manipulados, acima de tudo por nós mesmos, pois falsificamos de maneira inexplicável tudo aquilo que o palhaço nos dissera durante a sua vida toda.
*Auditor Fiscal da Receita Federal aposentado
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