Desvendando a farsa das escolas Cívico-Militares

Cabe destacar que a revogação do decreto de criação do Pecim não representa o fim definitivo das escolas cívico-militares

Thiago Esteves
Publicada em 27 de julho de 2023 às 18:10
Desvendando a farsa das escolas Cívico-Militares

No dia 21 de julho, após meses de uma longa espera, o governo federal finalmente editou o Decreto nº 11.611/2023, que colocou fim ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Se por um lado, esta importante medida – fruto de uma gigantesca mobilização de praticamente todas as associações representativas do campo técnico, científico e profissional e dos movimentos sociais do campo educacional do país – não obteve a devida atenção por parte dos meios de comunicação, de outro, observamos uma mistura de desconhecimento, desinformação e propagação de informações questionáveis ou inverídicas nas breves e apressadas vezem em que a questão foi abordada pela imprensa hegemônica.

O Pecim foi instituído, durante a gestão do ex-presidente que não merece ter o seu nome mencionado, pelo Decreto nº 10.004/2019. Em linhas gerais – não por acaso instituído por um decreto – previa a contratação de militares ativos e aposentados das forças armadas (Aeronáutica, Exército e Marinha) e das forças auxiliares (Corpo de Bombeiros e Polícia Militar) para exercerem funções nas “áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa” em colégios e escolas das redes estaduais, distrital e municipais que formalizassem a adesão ao programa. Aqui eu gostaria de abrir dois importantes parênteses para tratar de questões fundamentais que demostram na prática o caráter extremamente autoritário deste projeto. O primeiro é o fato deste programa ter sido implantado por meio de um decreto, que é uma ferramenta utilizada pelo chefe do poder executivo, neste caso o presidente da república, e que é válida imediatamente após a sua publicação, sem que seja necessário o debate e aprovação por parte do poder legislativo. O segundo se refere a formalização da adesão das escolas ao Pecim, que deveria ser precedida de um amplo debate envolvendo toda a comunidade escolar. Ao final deste debate, a comunidade escolar é consultada e escolhe entre manter o modelo de gestão escolar em vigor ou se opta pela adesão ao Programa.

Este processo, entretanto, tem sido objeto de inúmeras críticas e denúncias, que têm como objetivo a aprovação a qualquer custo do projeto das escolas cívico-militares. Entre estas denúncias, destacamos a participação ostensiva de pessoas que não fazem parte da comunidade escolar, o envolvimento de políticos com e sem mandato, a coação, silenciamento e ameaça de transferência ou demissão para docentes, funcionários e estudantes contrários ao projeto, além da definição de critérios de votação que favoreçam a sua aprovação. Destaco que este tipo de situação é possível, pois ainda existe uma parcela das redes públicas de ensino, cujos cargos de direção e coordenação escolar são ocupados por meio de indicações políticas e não escolhidos pela comunidade escolar ou selecionados por seleção pública.

Antes de mais explicações sobre o funcionamento do Pecim e a realidade por trás das escolas militarizadas, é preciso esclarecer que diferente do que muitos jornalistas, repórteres e comunicadores têm afirmado, as escolas que aderiram aos programas de escolas cívico-militares, seja em nível federal, estadual, distrital ou municipal NÃO se tornaram escolas militares. Assim, não é demais reafirmar, que uma escola cívico-militar ou militarizada, mesmo que contando com militares em seus quadros de funcionários, NÃO é uma escola militar.

Sobre a atuação dos militares, ativos ou aposentados, em uma instituição educacional, especialmente nas “áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa”, além de uma excrecência é um ato notadamente ilegal. Talvez, alguns leitores e leitoras não saibam, mas a Lei nº 9.394/1996, também conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ou LDB, estabelece como formação mínima para a atuação na administração, planejamento, inspeção, supervisão e/ou orientação educacional na educação básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio) o curso de graduação em pedagogia. Além disso, me parece que estas contratações ferem o princípio da isonomia, pois, ainda que os militares tivessem essa formação acadêmica, seria necessário que eles fossem aprovados em concurso público específico de provas e títulos, concorrendo em igualdade de condições com os demais profissionais que também possuem o curso superior de pedagogia.

Estes militares tampouco podem atuar na docência nas escolas cívico-militares, uma vez que a mesma LDB também determina que para ministrar aulas no Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano) e no Ensino Médio, os professores e as professoras devem ter, como formação mínima, o curso de graduação em nível de licenciatura. Além desta formação mínima, é preciso ressaltar que muitos docentes se especializam constantemente em cursos de formação continuada e de pós-graduação lato e stricto sensu, na maioria das vezes, sem nenhum tipo de apoio ou auxílio da parte dos seus empregadores. Assim como no caso anterior, ainda que os militares que atuam nas escolas militarizadas tivessem um curso de graduação em nível de licenciatura, deveriam passar por concurso público ou processo seletivo em igualdade de condições com as demais pessoas interessadas. Em caso de aprovação, os militares da ativa deveriam pedir demissão de seus cargos, uma vez que não existe previsão legal para que estes profissionais acumulem duas matrículas no serviço público, a exemplo de docentes e profissionais da saúde, dentre outros. Não é demais lembrar, que em muitos casos, o nível de escolaridade exigido para o ingresso nas forças armadas ou forças auxiliares é o certificado de conclusão do ensino fundamental ou do ensino médio.  Com relação aos custos envolvidos na implementação e manutenção das escolas cívico-militares ou militarizadas, diferente da ideia corrente no imaginário de parte da população, que associa os militares ao comedimento nos gastos públicos, estas instituições possuem um custo por aluno muito maior do que outras escolas das mesmas redes de ensino, o que é injustificável. O custo por aluno nas escolas cívico-militares também é maior do que na rede federal de educação, que congrega os Institutos Federais, Cefets e Colégio Pedro II, dentre outras instituições. Para termos ideia da distorção que envolve os custos das escolas cívico-militares quando comparadas com as outras escolas públicas, enquanto um estudante das redes estaduais, distrital ou municipais custa, aproximadamente, entre R$ 2.875,03 e R$ 4.935,71 por ano, na rede federal esse valor é cerca de R$ 16.000 e nas escolas militares R$ 19.000.

Já nas escolas cívico-militares ou militarizadas, somente nos últimos três anos, isto é, 2020, 2021 e 2022, foi destinada a quantia de R$ 132 milhões, dos quais aproximadamente R$ 100 milhões foram efetivamente empenhados para atender a pouco mais de 80 mil estudantes matriculados em 216 escolas aderiram ao PECIMPECIM, ainda que nem todas tenham efetivamente implementado este modelo. Para termos ideia da distorção representada pelos custos envolvidos na manutenção das escolas cívico-militares, somadas as redes estaduais, distrital e municipais, possuem em conjunto 15, 927.227 de estudantes matriculados em cerca de 90.000 escolas regulares de tempo parcial e integral nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Nunca é demais lembrar aos leitores e leitoras que, pela falta de recursos, uma parcela significativa destas escolas não possui banheiros, água encanada, internet ou mesas e cadeiras em quantidade suficiente para os estudantes.

Além destes recursos, bem acima do que recebem as demais escolas das redes públicas, a gestão militar de algumas escolas cívico-militares cobra taxas de matrícula e mensalidades, disfarçadas de “contribuições voluntárias”. É preciso destacar que tal cobrança, ainda que não seja compulsória, é ilegal, e estes recursos não são passíveis de qualquer tipo de controle ou fiscalização nos seus gastos. Os pais ou responsáveis pelos estudantes “selecionados” para as escolas militarizadas, além dessas contribuições financeiras, têm de arcar com gastos com uniformes, materiais e livros didáticos, que na maior parte das redes públicas são disponibilizados gratuitamente. Fica aqui uma pergunta, para a qual eu não tenho uma resposta, mas que divido com os leitores deste artigo. Por que as escolas cívico-militares não utilizam os uniformes e materiais didáticos disponibilizados pelas redes públicas de ensino?

Com relação a seleção dos(as) estudantes que serão matriculados(as) nas escolas militarizadas, como se já não bastasse os elementos anteriormente apresentados, fica evidente que os militares buscam ainda mais privilégios do Estado brasileiro. Isto porque, são inúmeros os relatos de reserva de vagas para filhos, parentes e indicados por militares e pelos funcionários civis das escolas cívico-militares. As poucas vagas que restam para ampla concorrência dos(as) candidatos(as) que não dispõe de “padrinhos ou madrinhas”, são disputadas em processos seletivos pouco transparentes, elaborados e conduzidos por bancas das quais não se conhece a composição, formação acadêmica e profissional dos(as) membros. Em alguns casos, esta seleção incluí ainda entrevistas com as famílias, com o claro objetivo de selecionar um determinado “padrão” de estudante.

Além destes recursos, bem acima do que recebem as demais escolas das redes públicas, a gestão militar de algumas escolas cívico-militares cobra taxas de matrícula e mensalidades, disfarçadas de “contribuições voluntárias”. É preciso destacar que tal cobrança, ainda que não seja compulsória, é ilegal, e estes recursos não são passíveis de qualquer tipo de controle ou fiscalização nos seus gastos. Os pais ou responsáveis pelos estudantes “selecionados” para as escolas militarizadas, além dessas contribuições financeiras, têm de arcar com gastos com uniformes, materiais e livros didáticos, que na maior parte das redes públicas são disponibilizados gratuitamente. Fica aqui uma pergunta, para a qual eu não tenho uma resposta, mas que divido com os leitores deste artigo. Por que as escolas cívico-militares não utilizam os uniformes e materiais didáticos disponibilizados pelas redes públicas de ensino?

Com relação a seleção dos(as) estudantes que serão matriculados(as) nas escolas militarizadas, como se já não bastasse os elementos anteriormente apresentados, fica evidente que os militares buscam ainda mais privilégios do Estado brasileiro. Isto porque, são inúmeros os relatos de reserva de vagas para filhos, parentes e indicados por militares e pelos funcionários civis das escolas cívico-militares. As poucas vagas que restam para ampla concorrência dos(as) candidatos(as) que não dispõe de “padrinhos ou madrinhas”, são disputadas em processos seletivos pouco transparentes, elaborados e conduzidos por bancas das quais não se conhece a composição, formação acadêmica e profissional dos(as) membros. Em alguns casos, esta seleção incluí ainda entrevistas com as famílias, com o claro objetivo de selecionar um determinado “padrão” de estudante.

Os leitores e leitoras que chegaram até aqui devem estar se perguntando se a melhoria na qualidade do ensino promovido a partir da militarização das escolas não compensaria a elevação dos custos dos governos com este modelo educativo, que inclui o pagamento dos militares. A resposta para esta pergunta é bastante simples não.

Além de todos os diversos problemas até aqui apresentados, não existe nenhum dado que possa confirmar a recorrente afirmação de uma suposta melhoria na qualidade do ensino nas escolas cívico-militares. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que é calculado a partir das notas dos estudantes no Sistema de Avaliação da Educação Básica) SAEB, não corrobora tais afirmações. Na verdade, quando comparamos os dados das avaliações educacionais confiáveis, percebemos que as notas obtidas pelos(as) estudantes das escolas cívico-militares são bastante próximos daquelas obtidas pelos(as) estudantes das demais escolas da mesma rede. Diferente dos estudantes das escolas da rede federal de ensino, que têm um desempenho no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) superior ao da média das escolas privadas e semelhante ao obtido pelos países mais desenvolvidos do ponto de vista educacional.

Esta situação se ainda agrava ainda mais quando levamos em consideração que após a militarização dessas escolas, são inúmeros os relatos de transferências compulsórias de professores, profissionais da educação e estudantes que se opõe ao projeto, bem como a desmobilização e até proibição de reuniões dos grêmios estudantis. Em um país onde milhares de crianças, jovens e adultos não tem o que comer nas suas casas e tem nas escolas a sua única alimentação do dia, está situação é ainda mais grave, pois fomenta ainda mais as desigualdades sociais existentes no país. 

Em relação a suposta qualidade é preciso destacar que em muitas destas escolas cívico-militares são utilizados artificios bastante conhecidos nos meios educacionais para burlar os sistemas de avaliação e aumentar as notas das instituições, que é criar estratégias para que apenas os(as) estudantes de melhor desempenho façam as avaliações. E nem assim, as notas médias são muito diferentes daquelas observadas em outras escolas das mesmas redes. 

Por fim, cabe destacar que a revogação do decreto de criação do Pecim não representa o fim definitivo das escolas cívico-militares ou militarizadas. Isto porque os estados e municípios possuem autonomia administrativa e orçamentária para a criação e manutenção de programas semelhantes. Entretanto, cabe ao governo federal, em especial ao Ministério da Educação e ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e ao poder judiciário, quando provocado, impedir o prosseguimento do desrespeito da legislação em vigor, conforme demostrei neste artigo. Sem o apoio e especialmente o financiamento do governo federal, dificilmente governadores(as) e prefeitos(as) terão recursos disponíveis para a manutenção de um programa que não tem qualquer comprovação de melhoria da qualidade da educação pública, ao contrário, é responsável pela manutenção da exclusão de milhões de estudantes, notadamente de minorias sociais. E ainda existem aqueles que querem reduzir a questão da militarização das escolas à uma simplória questão de ideologia.  

Thiago Esteves

Thiago Esteves é Professor de Sociologia, Doutor em Educação e Vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais.

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