INVASÃO INÉDITA DA TERRA INDÍGENA IGARAPÉ LAGE – Nova Mamoré (RO)
Esbulho fora de controle do Poder Público e recorde de desmatamento
Por Pastoral Indigenista de Guajará-Mirim – A pressão da colonização sobre as Unidades de Conservação e as terras Indígenas de Rondônia alcançou as terras do Povo Wari ao Oeste do Estado, próximas à divisa com a Bolívia. Entre elas, a Terra Indígena Igarapé Lage (TI Lage), nos municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré.
As terras indígenas vizinhas, TI Karipuna e TI Uru Eu Wau Wau, que detinham o recorde de desmatamento, tiveram uma queda significativa do desmatamento em 2023, graças a intervenções eficientes. Diferentemente do que vem ocorrendo com a TI Lage que, com 800 hectares derrubados em 2023, 4 vezes mais que no ano anterior, alcançou o triste recorde de desmatamento em terras Indígenas de Rondônia para o ano de 2023.
A Terra Indígena Igarapé Lage – TI Lage
A TI Lage com 107.321 hectares, sob a administração da Coordenação Regional da FUNAI de Guajará-Mirim, homologada e registrada no SPU em 1981, conta com uma população de 900 indígenas do Povo Wari (ou Oro Wari), distribuídos em 14 aldeias.
O grande povo Wari, formado por 08 etnias, com aproximadamente 5.000 indígenas, todos falantes da língua Wari (família linguística Chapacura) é o mais populoso do Estado de Rondônia. Nas décadas de 40 e 50, o povo Wari foi dizimado com o massacre de aldeias inteiras a mando de seringalistas e, nos anos pós contato, por epidemias de gripe (influenza) e sarampo, entre outras doenças contagiosas. No ano de 1965, o SPI registrou apenas 399 WARI (Pacaá Nova), agrupados em 04 Postos Indígenas. Os massacres deixaram traumatismos que, em caso de conflito como a invasão atual da TI Lage, ressurgem com força.
Os Wari possuíam um imenso território, onde hoje estão os municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, incluindo o Parque Estadual de Guajará-Mirim (PEGM). Através de Projetos de colonização, da grilagem liberada e da criação de Unidades de Conservação, o Estado tomou a maior parte desse território. O recente Distrito de Nova Dimensão nasceu em pleno território Wari da etnia Oro Mon, em cima da redução da TI Karipuna e da grilagem da Zona 2 do Zoneamento Socioeconômico-Ecológico- ZSEE do Estado de RO.
A TI Lage tornou-se uma ilha em meio a fazendas do agro, principalmente a soja. É atravessada pelo rio homônimo, espinha dorsal que recebe inúmeros tributos que, por nascerem fora da terra indígena, são altamente contaminados por agrotóxicos. Os Wari estão preocupados com o envenenamento de seus igarapés e lençóis freáticos, uma invasão silenciosa que vem somando à contaminação pelo mercúrio, mais antiga e comprovada por um inquérito realizado pela Fiocruz na década de 90. A pulverização dos agrotóxicos de avião alcança a mata, a população indígena e suas roças. Os plantios de soja nem sequer respeitam a divisa, avançando sobre as terras indígenas Lage e Ribeirão.
Invasão da TI Lage por uma organização criminosa
A partir do final de 2021, no Distrito de Nova Dimensão, Município de Nova Mamoré, uma organização criminosa está invadindo a TI Lage pela Linha 28, comercializa quantidades faraônicas de madeira de lei, pratica a grilagem e o loteamento de uma imensa área de floresta (20.000 hectares), ameaça os indígenas das aldeias das linhas 24 e 26 próximas à invasão, e ainda, conta com a cumplicidade de servidores de órgãos de fiscalização.
Por conta dessa invasão, a terra indígena já perdeu 1.000 hectares de sua cobertura florestal. Imagens satélites evidenciam a progressão do desmatamento que, até hoje, não parou.
Nos meses de maio e junho de 2022, centenas de invasores armados (de 200 a 400) entraram na TI Lage pela Linha 28; roçavam debaixo da cúpula das árvores e, em seguida, derrubavam.
A imagem satélite da SEDAM do mês 09/2022 evidencia um corredor de desmatamento que atravessa a TI Lage de ponta a ponta, com 20 km de comprimento e, aproximadamente, 100 metros de largura, o que corresponde a 200 hectares. No mês 12/2022, uma nova imagem evidencia a abertura de ramais.
Tentativa de invasão pela Linha 24
Amanhecendo o dia 06 de junho de 2023, os moradores da aldeia 24 se depararam com uns 60 colonos armados que atravessaram a aldeia e entraram na terra indígena. Chamaram a FUNAI que, prontamente, veio com duas viaturas da Polícia Federal. Ao chegarem, os policiais encontraram dezenas de colonos retornando que, ao verem as viaturas, se espalharam pelos pastos. Alegando um efetivo reduzido, os policiais não prenderam os invasores nem o suposto “cabeça” da invasão, estacionado por perto num veículo equipado de rádio. Os invasores não realizaram o que tinham planejado, mas conseguiram driblar a fiscalização graças ao vazamento de informação.
Através de áudios e de um mapa do “cabeça” que vazaram, a Polícia Federal descobriu o objetivo da organização criminosa em lotear mais 20.000 hectares (10 km x 20 km) da Terra Indígena, entre as linhas 20 a 25 [linhas com numeração de cor branca].
O estrago ambiental não tem preço
Nas 02 primeiras Operações, o Governo avaliou o estrago ambiental em milhões de reais; entretanto, para os Wari, a destruição de aldeias antigas, castanhais, igarapés, entre outros locais, não têm preço, pois são sagrados. Se para uns, a terra é objeto de produção e especulação, para outros, ela é a garantia imprescindível para seu sustento e sua reprodução físico-cultural.
Depoimentos de Wari:
Esbulho
– “os invasores entram pela Linha 28, têm máquinas pesadas e acabam com a madeira, com a mata, estragam os igarapés; inclusive, derrubaram um castanhal inteiro”;
– “os invasores têm roças e pastos formados: Desde o ano de 2023, estão levando cachos de bananas, abóboras e melancias para Nova Dimensão”;
– “os pastos estão se aproximando de nossas aldeias, isso é muito ruim pois a mata não vai voltar de novo, o capim vai invadir nossas roças e quando pega fogo, o fogo avança na mata.”
– “estão destruindo nossas aldeias sagradas. Fomos caçar no rumo da aldeia KOYAI [parte sul da TI Lage] e havia 03 invasores com roças. Nos disseram que vieram de Espigão do Oeste e compraram a terra. Nós queríamos expulsá-los. Só não o fizemos, pensando nos parentes que moram perto de Nova Dimensão e que iriam ser vítimas de retaliação”.
Restrição do usufruto da terra e dos igarapés
(Wari da parte sul da TI Lage):
– “Quando fomos quebrar castanha, tivemos que pedir licença cada vez que nós passarmos pela benfeitoria de um invasor.
(Wari da parte norte da TI Lage):
– “Nesse ano, não fomos quebrar castanha porque o nosso castanhal estava ocupado por invasores.”
– “um invasor fechou o acesso a um igarapé próximo a nossa aldeia. É nesse igarapé que a gente pescava e onde as mulheres jogavam água [pesca tradicional das mulheres no verão] “.
– “Nós não saímos mais para caçar com medo dos invasores que andam armados!”
Ameaças e intimidação dos Wari das aldeias 24 e 26
– “depois da tentativa de invasão pela Linha 24 que não deu certo [06/2023], passamos a receber ameaças. Durante muito tempo, pessoas estranhas apareciam na aldeia 26 para nos assustar; até hoje, ninguém dorme direito”.
– “nós vivemos o tempo todo com medo!” desabafaram uma grávida internada em Guajará-Mirim e acompanhantes de doentes.
– “fui parado na entrada de um supermercado de Nova Dimensão por vários homens, com arma na cintura, que queriam saber quem era o indígena que chamou a polícia. O mesmo aconteceu com outro parente na BR 420 a caminho de Nova Dimensão”.
– “Os alunos do ensino médio que estudavam em Nova Dimensão pararam de estudar no meio do ano passado. Meu filho parou de estudar no meio do terceiro ano”.
– “Ninguém mais vai a Nova Dimensão. Para fazer as nossas compras, vamos a Palmeiras, na Linha 20 [08 km mais distante].
Atuação dos Órgãos de fiscalização
– Até o primeiro semestre de 2022, FUNAI e Polícia Federal realizavam raras incursões pela Linha 28 e paravam na divisa da terra indígena. A Polícia Federal realizou um ou outro sobrevoo, sem grande relevância, já que os invasores estavam roçando debaixo da copa das árvores.
– No segundo semestre de 2022, a fiscalização começou a entrar na terra indígena e a prender moto ou motosserra de um invasor, e em seguida, retornava.
– Em 06/06/2023, uma intervenção rápida da Polícia Federal na Linha 24 fez os invasores desistirem desse novo acesso. A partir de então, a organização criminosa aumentou as ameaças e intimidações em relação aos Wari das aldeias 24 e 26.
– Em 23/08/2023, foi realizada a Operação Oro Oro, primeira Operação Policial que contou com o reforço das Forças Armadas e outros setores.
– Em 21/03/2024, 07 meses depois, foi realizada a Operação Wari, similar à primeira Operação. No intervalo, o desmatamento tinha passado de 670 para 840 hectares, comprovando que a 1ª Operação não intimidou a organização criminosa. Testemunhas relatam terem ouvido as máquinas voltarem a funcionar poucos dias depois das Operações.
– Em 17 e 18/05/2024, menos de 2 meses após a Operação Wari, houve uma 3ª Operação. A ponte de 100 metros que tinha sido destruída nas 02 Operações anteriores, já tinha sido reconstruída.
No passado, as tentativas de invasão eram controladas pelos Órgãos de fiscalização e o estrago ambiental era mínimo. Em 12/2015, o MPF apelou imediatamente para as Forças Armadas que fizeram a desintrusão de forma pacífica.
Motivos que explicam a ineficiência da fiscalização:
– O vazamento de informações, pois desde o início da invasão, invasores e maquinários desaparecem antes da chegada das viaturas dos órgãos de fiscalização.
– Operações de “apenas um ou dois dias” que só fazem arranhar a organização criminosa.
– A demora da investigação para identificar e entregar na justiça os “cabeças” da invasão, os intermediários que comercializam a terra e os servidores que vazam as informações.
– No Distrito de Nova Dimensão, a falta de atuação dos Órgãos Estaduais de fiscalização e do IBAMA. Como explicar o transporte de tão grande volume de madeira nobre, sendo que a mesma só se encontra em terras públicas protegidas?
– Em 08/2022, no auge da invasão, ao derrubar a casa de fiscalização na divisa da TI Lage com a Linha 28, a FUNAI deu um “sinal verde” para os invasores. Essa casa, que nunca foi inaugurada, foi construída em torno do ano de 2011 com recursos de compensação da Hidroelétrica do Jirau. A FUNAI alegou falhas na estrutura que comprometia a segurança.
Mobilização dos indígenas
A partir do mês de maio de 2022, a Organização Oro Wari que congrega 7.500 indígenas de 25 etnias da região de Guajará-Mirim e de Nova Mamoré, vem denunciando essa invasão. Os Wari são cada vez mais indignados e revoltados. O invasor está pisando fundo, não apenas na terra, como também na alma dos indígenas.
– Inúmeros documentos foram redigidos e entregues para as autoridades competentes;
– De 30/05 a 02/06/2022, realizaram uma Audiência Pública onde os principais convidados, o Coordenador Regional da Funai e a Dra. Gisele Bleggi, então-Procuradora do MPF em Guajará-Mirim, não compareceram;
– De 06 a 13/06/2022: mais de 100 lideranças ocuparam a sede da FUNAI durante 08 dias. O Coordenador Regional será substituído, mas nada aconteceu em relação à invasão da TI Lage.
– Lideranças foram a Brasília falar pessoalmente com a Presidente da FUNAI e a Ministra do MPI-Ministério dos Povos Indígenas;
– Em junho de 2022, a Organização Indígena endereçou um ofício para a Dra. Eliana Peres Torelly de Carvalho, Procuradora da 6a Câmara em Brasília. A mesma agendou uma reunião on-line com as lideranças. Nessa reunião, a Dra. Eliana apresentou a Dra. Gisele Bleggi como sendo a nova Procuradora da 6ª Câmara em RO. Essa nomeação nada mudou, até pelo contrário. Foi mais um ano de impunidade e a invasão se consolidou. Indignados pela omissão e a falta de eficiência do Poder Público os indígenas acabaram por perder confiança nos Órgãos Federais responsáveis.
Petições da antropóloga A. Vilaça
A antropóloga Aparecida Vilaça, professora no Museu do Rio de Janeiro, profunda conhecedora do Povo Wari, sendo que, desde o ano de 1986, trabalha com o referido povo, é falante da língua, recebeu depoimentos assustadores que motivaram duas representações para o MPF-RO: a primeira em 30/05/2022 com Nº 20220042809; e a segunda, em 02/06/2022, com Nº 20220043563.
“Ressalto que na situação de ilicitude já declarada, o tempo é questão essencial. Os órgãos públicos responsáveis devem agir com rapidez, sob pena de conflitos interpessoais, que podem envolver chacinas com danos irreparáveis e degradações ambientais irreversíveis. Lembro que essa TI é homologada e que os indígenas necessitam do território como meio de vida. “ .
As representações, muito bem fundamentadas, não foram atendidas. Em 04/2023, Vilaça indagou o MPF-RO a respeito das providências que tinham sido tomadas. Dra. Gisele Bleggi, Procuradora, justificou a demora da atuação, alegando “… a alta demanda imposta a esse gabinete”!
Concluindo
Diante da omissão e ineficiência dos Órgãos Federais e Estaduais frente à invasão inédita da TI Lage, terra ancestral do Povo Wari, totalmente regularizada, uma ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA está desafiando as autoridades e as leis do país.
Já completou 2 anos e meio que, na maior impunidade, essa organização explora quantidades faraônicas de madeira nobre, pratica a grilagem, o loteamento e a comercialização da terra indígena; destrói as aldeias tradicionais, castanhais e igarapés; ameaça e intimida os indígenas das aldeias próximas à invasão, criando um clima de medo permanente; restringe o usufruto da terra pelos Wari como também o acesso à sede do Distrito de Nova Dimensão, deixando alunos do ensino médio fora de sala de aula. Os indígenas são abandonados à própria sorte e a qualquer momento, podem ser vítimas de um confronto armado com os invasores.
O vazamento de informação, as raras viagens de fiscalização, as operações relâmpagos, a falta de fiscalização da madeira nobre, o atraso na investigação e na prisão dos “cabeças “, o clima de IMPUNIDADE e a OMISSÃO do MPF-RO diante das denúncias e petições encaminhadas há 02 anos atrás, são responsáveis, em grande parte, pela continuidade da invasão.
Portanto, sugerimos:
- De imediato, uma Operação Policial “ARRASTÃO” que percorre a TI Lage, partindo do sul da área em direção ao norte, retirando os invasores um por um, enquanto demais policiais mantém a vigilância na divisa da TI Lage-Linhas 28 e 26.
- Após o êxito do arrastão, manter uma equipe policial permanente na divisa da TI Lage- Linha 28. E desde já, construir um alojamento provisório no local da “casa branca”.
- Investigar os “cabeças” da invasão e eventuais políticos envolvidos, direto ou indiretamente, para que respondam na Justiça; A prisão dos mesmos enfraquecerá a organização criminosa.
- Investigar os servidores de Órgãos de fiscalização que vazaram as informações e que os mesmos respondam na Justiça;
- Incentivar e apoiar a formação de novas aldeias na divisa das Linhas 28 e 29;
- Garantir a segurança dos indígenas do Distrito de Nova Dimensão;
- Que o MPF tenha um trabalho em conjunto com a Organização Oro Wari e as lideranças da TI Lage.
Guajará-Mirim-RO, 24 de maio de 2024
Pastoral Indigenista de Guajará-Mirim
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