Novo patamar de telefonia, 5G ainda deixa dúvidas sobre inclusão digital no Brasil

A expectativa no início do ano era de que o primeiro leilão das faixas de uso do espectro de ondas seria realizado em novembro próximo, mas há ceticismo em relação a essa data

Agência Senado
Publicada em 06 de julho de 2020 às 11:01
Novo patamar de telefonia, 5G ainda deixa dúvidas sobre inclusão digital no Brasil

Entre as poucas perspectivas que no momento soam razoavelmente promissoras para o Brasil pós-pandemia está a implantação da quinta geração da telefonia móvel. Tomando em consideração as regras gerais baixadas em janeiro e fevereiro pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e os anúncios que vêm sendo feitos tanto pela instituição quanto pelo governo, as operadoras poderão transmitir sinais de radiofrequência no padrão 5G já a partir de 2021 ou 2022, dependendo da data da licitação, e ampliar o 4G em horizonte ainda indefinido. A expectativa no início do ano era de que o primeiro leilão das faixas de uso do espectro de ondas seria realizado em novembro próximo, mas há ceticismo em relação a essa data por parte, por exemplo, do senador Jean Paul Prates (PT-RN).

Um dos reforços ao ingresso do país na quinta geração da telefonia foi dado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, em seu discurso de posse no dia 17 de junho. Ele relacionou o 5G à “inclusão digital”, lembrando os efeitos do isolamento social provocado pela covid-19.

— É uma questão de sobrevivência para a economia brasileira. Não adotá-lo poderá significar perder mercado para as exportações e incorrer em outros atrasos — observa o consultor legislativo do Senado Rodrigo Abdalla, engenheiro elétrico de formação e que vem de um período de quatro anos na assessoria do Conselho Diretor da Anatel.

De acordo com Abdalla, a indústria, por exemplo, precisará do 5G se quiser elevar sua produtividade, obter ganhos de escala e reduzir custos. A nova tecnologia será fundamental para o funcionamento de robôs numa fábrica ou para máquinas de semeadura e distribuição de fertilizantes na agroindústria.

Mas a alta confiabilidade das transmissões de dados em 5G alcançará campos até agora pouco explorados. Um deles, que ficou mais em evidência por causa do novo coronavírus, é a telemedicina. Equipes de cirurgiões terão de contar com redes altamente confiáveis e que deem respostas rápidas, na casa de milésimos de segundos, para executarem operações delicadas e inclusive evitar riscos a seus pacientes.

— As estradas e rodovias têm uma cobertura muito precária hoje. Isso também vai ter de mudar — diz o consultor.

Aplicações como o controle de equipamentos de trânsito, carros autônomos, computadores, guindastes portuários e fornos elétricos caseiros estão abrigadas sob o rótulo da ‘internet das coisas’, em inglês IoT (internet of things). O número de dispositivos que poderão ser gerenciados por meio dos sinais do 5G é incalculável. A comunicação, que já está em uso na China, em países da Europa e algumas cidades norte-americanas, é do tipo multiconectiva. As máquinas conversam com seus gestores, mas também conversam entre si, numa versão hipermoderna dos antigos apólogos, embora costurando narrativas curtas, fragmentadas, prenhes de objetividade e, ao fim, sem nenhuma lição de moral.

Sempre dentro do voo da comunicação sem fio, o passo seguinte, 6G, vai se apoiar em inteligência artificial, com máquinas decidindo o que fazer em relação a outras máquinas, mas essa é uma história na qual o Brasil vai demorar um pouco a entrar, conforme Abdalla. Na visão dele, mesmo em relação ao 5G, o nível de investimentos é tão alto que “não dá para correr muito rápido”.

A estimativas desses investimentos variam de R$ 20 bilhões a R$ 35 bilhões.

O consultor do Senado explica que o 5G já terá um papel altamente disruptivo. Se a telefonia móvel esteve, basicamente, voltada para as pessoas até o 4G, mesmo no âmbito das empresas e dos negócios, na quinta geração vai mirar as máquinas.

— No Brasil, temos atualmente algo em torno de 200 milhões de acessos (chips em funcionamento). Com o 5G, a expectativa é de bilhões de acessos, de dispositivos conectados, aplicações novas, tecnologias novas — prevê o ex-assessor da Anatel.

Abdalla também diz que "agora teremos de ter mais investimentos em torres, mais fibra ótica instalada e mudar aplicações para gerenciar coisas. O usuário comum também terá ganhos, como reações mais imediatas a comandos num videogame e downloads mais rápidos de filmes em alta definição, como 4k ou 8k".

Isso, evidentemente, para quem já está em áreas com oferta de tecnologias de melhor padrão, mas não para quem ainda depende da segunda geração (ver infografia).

— Estudo da agência reguladora mostra que há cerca de quatro milhões de pessoas no Brasil sem qualquer sinal de dados móveis — alerta Abdalla.

O senador Jean Paul Prates ressalta que "ainda há 26 milhões de pessoas no Brasil sem acesso à rede mundial de computadores".

— Duvido muito que o 5G venha a alterar essa desigualdade digital. Para que isso seja resolvido, precisamos resolver é a nossa economia — adverte Jean Paul. (ver destaque)

Como fazer então para incorporar esses brasileiros a um universo de atividades que começa a ser vital, não só para as relações sociais, mas para a obtenção de aprendizado, para a procura de trabalho e para o recebimento de benefícios como o Bolsa Família e o auxílio emergencial?

Com a virtual morte do 2G, pela impossibilidade econômica e técnica de convivência de quatro tecnologias tão distintas, a diretiva apontada pela Anatel na Portaria 418/2020 é que, ao abocanharem o 5G, as operadoras assumam o compromisso de atenderem com banda larga móvel (em tecnologia 4G ou superior) cidades, vilas, áreas urbanas isoladas e aglomerados rurais que possuam população superior a 600 habitantes. Em que prazo? Isso ainda não foi definido, mas a julgar pelo que aconteceu no caso do 3G e do 4G, não é impossível que venhamos a ter um país cada vez mais cindido entre a metrópole high-tech e o sertão desconectado — e isso provavelmente não se aplicará às zonas de influência do agronegócio de exportação. É que as operadoras, além de prazo longo para estenderem suas coberturas, vão só até aonde podem ter retorno no curto prazo, o que significa chegar com seus sinais às sedes de municípios onde há obrigação legal e deixarem distritos, vilas, assentamentos e aldeias ao deus-dará.

A movimentação mais recente da Anatel foi a consolidação, em junho do ano passado, de um diagnóstico sobre a falta de cobertura de telefonia (ou transmissão de dados) móvel para atender ao Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (Pert), previsto na Lei nº 9.472/1997. Essa legislação preparou a desestatização da telefonia no ano seguinte (1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso) e criou a própria Anatel.

Oficialmente, a Anatel anunciou o levantamento (veja infografia) sobre a oferta de sinal de banda larga no país “a fim de possibilitar que a agência identifique se existe infraestrutura capaz de atender as demandas em cada região, para permitir a adoção de ações efetivas de qualidade, de ampliação do acesso, de disponibilização de espectro, de estímulo à competição, dentre outras”.

Acesse a lista das comunidades sem 4G ›

A demonstração “com clareza” das “lacunas nas redes de transporte e de acesso em todo o país” deveria ser seguida da “relação de projetos de investimentos capazes de suprir as deficiências identificadas no diagnóstico e apresentar as possíveis fontes de financiamentos a serem utilizados pelo Poder Público para a execução de tais projetos”.

O Poder Público tem o dever de:
I - garantir, a toda a população, o acesso às telecomunicações, a tarifas e preços razoáveis, em condições adequadas;
II - estimular a expansão do uso de redes e serviços de telecomunicações pelos serviços de interesse público em benefício da população brasileira;
III - adotar medidas que promovam a competição e a diversidade dos serviços, incrementem sua oferta e propiciem padrões de qualidade compatíveis com a exigência dos usuários; (Lei 9.472/1997)

As regras do 5G poderão deixar em situação mais incerta as localidades com menos de 600 habitantes, o que levou a Ouvidoria da agência reguladora a apresentar em maio proposta para viabilizar a cobertura do Serviço Móvel Pessoal em 12,8 mil localidades onde vivem 3,26 milhões de habitantes. A sugestão é permitir que pessoas físicas e jurídicas, inclusive prefeituras, possam utilizar equipamentos próprios de baixa potência (até 5 watts) para o atendimento das áreas não cobertas pelo serviço móvel, desde que devidamente homologados pela Anatel.

"Entendemos que, à luz do princípio da razoabilidade, é possível atingir um denominador comum que atenda interesses de localidades com menos de 600 habitantes sem impor novas obrigações deveras custosas às prestadoras do Serviço Móvel Pessoal (SMP) ou, ainda, provocar repercussões negativas às redes dessas prestadoras”, argumentou em sua proposição o ouvidor da Agência, Thiago Botelho. Segundo ele, durante a pandemia do novo coronavírus, “muitos cidadãos residentes em áreas não atendidas tiveram severas dificuldades, por exemplo, de se cadastrar em site e aplicativo para o recebimento de benefícios temporários oferecidos pelo Governo Federal”. A Ouvidoria acredita ser “socialmente inadequado considerar o uso de repetidor de baixa potência devidamente homologado pela Anatel como desenvolvimento clandestino de atividades de telecomunicações quando inexiste relação comercial ou propósito de lucro”.

Prestado em regime privado, o SMP segue lógica de mercado e não se pauta pela obrigação de atender 100% da população. É considerado atendido o município quando a área de cobertura do serviço contiver, pelo menos, 80% da área urbana de seu distrito-sede. O atendimento com serviço móvel nas localidades e distritos não sede de municípios (vilas, estradas, zona rural, etc.) e nos 20% da área urbana do distrito-sede (onde não é obrigatória a cobertura), dependerá do plano de negócio das prestadoras de SMP que atendem a região. Ou seja, trata-se de cobertura facultativa, passível de negativa pela prestadora caso não lhe interesse financeiramente. (Ouvidoria da Anatel)

Independentemente do destino, risonho ou não, dos brasileiros do interior, a Anatel terá de estabelecer regras para a própria operacionalização do 5G no que se refere ao mercado das “coisas”. A mesma portaria 418 que estabeleceu as diretrizes para o leilão das faixas de radiofrequências de 700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz precisa ser seguida por regras mais específicas sobre as faixas de ocupação do espectro eletromagnético, o que envolve aspectos técnicos e mercadológicos. Algumas já foram delineadas.

Rodrigo Abdalla considera superado o conflito entre número de participantes do leilão e qualidade do sinal, já que dos 300 Mghz disponíveis inicialmente a Anatel providenciou mais 100 Mghz em um processo que levou em consideração a continuidade em bom padrão das transmissões da TV aberta.

— 400 Mghz é mais do que a soma de todo o espaço ofertado nas licitações desde 1998. Mesmo que tenhamos quatro concorrentes, cada operadora terá confortáveis 100 Mghz para trabalhar — explica o consultor.

A dúvida por enquanto é sobre a participação da Oi, empresa que vem enfrentando sérias dificuldades financeiras e está em recuperação judicial desde 2016, quando apurou um baque de R$ 65 bilhões. No momento, a empresa se ressente inclusive da queda no tráfego de voz. Não está descartada a participação de outro concorrente nacional ou estrangeiro junto com a Vivo, a Claro e a Tim para operar na faixa de 3,5 Ghz, ideal para coberturas em larga escala nas oito regiões predefinidas pela Anatel. No mercado, especula-se sobre a participação de operadores menores em âmbito regional aproveitando fatias da ordem de 50 Mghz.

Essa divisão do mercado, entretanto, poderá ter um contorno diferente se a Anatel aceitar o pedido do setor industrial para que sejam permitidos projetos próprios de operação no 5G, os Serviços Limitados Privados (SLP), conforme o gerente-executivo de Política Industrial da CNI, João Emilio Gonçalves (ver entrevista).

Outra questão a trazer incerteza ao ambiente da quinta geração é a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, que de alguma forma tem afetado os debates sobre o 5G no Brasil. Segundo o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto, a incorporação da tecnologia 5G não vai obedecer a critérios técnicos, simplesmente:

"A discussão não será somente técnica, tá? Entra o lado político, avaliação... Exatamente neste pós-pandemia, isso não é um posicionamento nosso — é um posicionamento do mundo inteiro. O mundo inteiro está repensando essas parcerias e tudo mais, tá? Eu não posso aprofundar muito com o senhor o assunto, mas eu garanto para o senhor. Já tenho, inclusive, diretrizes do próprio presidente no tocante a esse assunto. Mas não é exclusivamente técnica. Tá bom?", disse Braga em um seminário via internet realizado pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ) no dia 16 de junho.

Embora o tema do 5G chinês tenha trazido à baila a questão da segurança da informação, Abdalla diz acreditar que a Huawei preocupa os norte-americanos porque pode abrir espaço a companhias chineses e à economia chinesa como um todo, não só nos mercados mundiais, mas dentro dos próprios Estados Unidos.

Na avaliação de Abdalla, o governo não pode interferir direta e formalmente na tecnologia a ser comprada pelas operadoras. Até agora, além da Huawei, desenvolvem tecnologia 5G a ZTE (China), a Ericsson (Suécia); a Nokia (Finlândia), a Samsung (Coreia do Sul) e a Cisco (EUA), esta excluindo a parte de rádio.

— Desde a desestatização, em 1998, os investimentos são feitos de forma privada. As operadoras é que escolhem o fornecedor dos equipamentos — esclarece o consultor.

A Claro, por exemplo, tem uma parceria com a Huawei e poderá preferir manter essa parceria.

Conforme Abdalla, o espaço que o governo teria para interferir seria utilizando instrumentos da política de relações exteriores relacionados ao comércio: medidas de preferência, taxação, cotas e barreiras alfandegárias.

— Do ponto de vista técnico, os chineses têm tecnologia mais competitiva. Foram os primeiros a chegar ao 5G — pondera o consultor.

De acordo com ele, a Anatel faz a gestão do espectro de radiofrequência, que é dividido para transmissões de TV, rádio, telefonia e internet. Quem paga mais, leva a concessão, de acordo com as regras. E o custo é diluído pela rede de dispositivos que pagarão tarifas. O Estado é, por conseguinte, um ente de organização e arrecadador dos recursos das taxas para fundos de telefonia.

O valor dos investimentos dependerá das obrigações das empresas ao longo do tempo. As metas de cobertura do 4G foram progressivas. As operadoras tiveram de oferecer a nova tecnologia de então em até seis anos para cidades acima de 30 mil habitantes. Hoje há ainda quatro mil cidades sem o 4G, que começou em 2013, na Copa das Confederações.

 

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