O meu encontro com João de Deus – Final

De volta à fila, chegou o momento de as pessoas com a ficha da primeira vez – nós entre elas –  se organizarem para caminhar de encontro à santidade. Ficamos na parte de trás, eu na frente do meu pai.

Vinicius Canova
Publicada em 19 de dezembro de 2018 às 09:59
O meu encontro com João de Deus – Final

Celebridades em área VIP, o descarte de seres humanos – e quem não gasta na entrada, gasta na saída

De volta à fila, chegou o momento de as pessoas com a ficha da primeira vez – nós entre elas –  se organizarem para caminhar de encontro à santidade. Ficamos na parte de trás, eu na frente do meu pai.

Estranhei por alguns momentos porque a coisa andava rápida; passamos em velocidade média pela antessala que dava acesso ao local sagrado onde mais pessoas meditavam de olhos fechados bem próximas ao divino e, lá adiante, já conseguíamos avistar a figura corpulenta de João de Deus sentada num trono assemelhando-se, a meu ver, a um desses sultões árabes endinheirados, cheios de adereços de ouro e rodeados por súditos.

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Quando havia apenas uns quatro ou cinco na minha frente, percebi que a entidade estava despachando os pacientes sem sequer conversar com eles. John não mandava todos para a cirurgia espiritual. Em muitos casos, apenas assinava uma “prescrição” do passiflora – o fármaco à base de maracujá de R$ 50,00 que citei no texto anterior – e pedia também o consumo da caríssima água fluidificada.

Pensei e fiquei com muita pena principalmente dos estrangeiros que atravessaram o globo talvez procurando apenas algumas palavras de consolo, e nem isso encontraram. Era um verdadeiro descarte sumário de seres humanos.

A poucos passos de ser atendido, já perdendo as esperanças e me sentindo um idiota, olhei para o lado esquerdo e percebi que existia ali, no mesmo ambiente, uma espécie de área VIP para seguidores famosos.  

Taís Araújo e Lazáro Ramos estavam meditando cobertos por uma manta branca em poltronas especiais, acolchoadas e imponentes, completamente diferentes dos bancos desconfortáveis de madeira que amassavam as bundas dos visitantes menos glamourosos. A distância do casal para o magnânimo não chegava a dar dois metros, uma posição bastante privilegiada se estivéssemos mesmo falando sobre o interlocutor de Deus, não de outro estelionatário da fé.

Desempolgado e já de saco cheio, chegou a minha vez.

João olhou para mim, pegou nas minhas mãos [err... fazer o quê?] e, de repente, questionou:

– O que você faz?

– Eu sou jornalista. Vim do Estado de Rondônia. Estou muito doente e...

– Sim, eu sei. Perguntei porque te conheço – disse, me cortando.

Foi o suficiente para resuscitar minha crença no tipo. Aquela corda de lucidez que a consciência havia jogado para me resgatar do buraco da alienação foi pro saco. Os questionamentos internos morreram também.

“Te conheço” é uma frase que você não desejaria ouvir dos seus credores, mas quando é entoada pelo sujeito que cura todo mundo, bem...,  aí são outros quinhentos.

Depois de mais uns segundos de conversa fiada, ele me mandou para a cirurgia espiritual. Não trocou uma só palavra com meu pai, que veio logo em seguida, o enxotando para a mesma sala que eu.

Foi então que eu descobri que João de Deus não enfiava tesoura cirúrgica pelo nariz de todas as pessoas nem raspava a córnea de geral. Aliás, tanto essas práticas quanto as incisões feitas com bisturi só são realizadas quando o visitante as solicita principalmente por incredulidade.

Depois do procedimento coletivo, nós, acreditando piamente que tínhamos escapado de gastar com passiflora e água fluidificada, fomos interceptados por um ajudante de John.

– O mestre deixou uma prescrição pra vocês para o passiflora e água fluidificada.

Resumidamente, não tem jeito: com ou sem cirurgia, você vai ter de colocar a roda pra girar desembolsando o cash game na entrada ou na saída.

É óbvio que depois da minha passagem por Abadiânia continuei doente, piorando e ainda não tenho as respostas que procurava, porém, a bendita medicina trouxe um bom indicativo e, com isso, aprendi a lidar com a questão. Atualmente convivo com o problema em sã consciência sem precisar fingir para barganhar por minha saúde com entidades fictícias em troca de uma fé que não tenho nem terei.

– E como você explica as pessoas que foram curadas?

Não explico. Nem ele. Nem qualquer outro adepto. O meu palpite está ligado, justamente, à força da fé e ao poder da vontade própria, do pensamento positivo. Essa fórmula poderia agir num contexto de reordenamento biológico, quem sabe? Hoje me parece menos doentio pensar assim do que acreditar em equações miraculosas.

Justamente por isso não quero desencorajar quem quer que seja.

Sobre João de Deus, não duvido que tenha praticado os abusos sexuais dos quais é acusado por um bocado de mulheres. O vejo como um charlatão ricaço, narcisista, cheio de propriedades, montado na grana, e que se apropria da desgraça alheia para se beneficiar. Sem contar que quando está na merda se interna no Sírio-Libânes, o complexo hospitalar mais estruturado e caro do País. Só que eu sou o Vinicius Canova, um cidadão comum, não o Estado.

Portanto, John of God, molestador ou não, tem o direito de usufruir à presunção de inocência até que seja investigado, processado e condenado. Se isso tudo ocorrer dentro dos trâmites legais e sua culpa for comprovada, que apodreça na cadeia e joguem a chave fora. Se for inocentado, por outro lado, que tenha a mesma liberdade de enganar os trouxas vulneráveis como eu, já que alguns pastores e padres da mesma laia mantêm a prerrogativa constitucional de tripudiar sobre a fragilidade humana.

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