Para entender o que aconteceu no Capitólio, é urgente voltar à história

Emblema do Sul escravagista durante a guerra civil de 1861-1865, a bandeira confederada empunhada há poucos dias por desordeiros no seio do Parlamento Federal não estava lá por acaso

THOMAS PIKETTY
Publicada em 13 de janeiro de 2021 às 11:30
Para entender o que aconteceu no Capitólio, é urgente voltar à história

(Foto: REUTERS/MIKE THEILER)

Após a invasão do Capitólio, o mundo perplexo se pergunta como o país que há muito se apresenta como o líder do mundo "livre" pode decair tanto. Para entender o que aconteceu, é urgente sair dos mitos e da idolatria e voltar à história. Na realidade, a república estadounidense é atravessada desde o início por fragilidades, violências e desigualdades consideráveis.

Emblema do Sul escravagista durante a guerra civil de 1861-1865, a bandeira confederada empunhada há poucos dias por desordeiros no seio do Parlamento Federal não estava lá por acaso. Remete a conflitos muito graves que devem ser enfrentados.

O sistema escravista desempenhou um papel central no desenvolvimento dos Estados Unidos, assim como no do capitalismo industrial ocidental como um todo. Dos quinze presidentes que se sucederam até a eleição de Lincoln em 1860, nada menos que onze eram proprietários de escravos, incluindo Washington e Jefferson, ambos nativos da Virgínia, que em 1790 tinha 750.000 habitantes (com 40 % de escravos), ou o equivalente à população combinada dos dois estados mais populosos do norte (Pensilvânia e Massachusetts).

Após a revolta de 1791 em São Domingos (joia colonial francesa e a primeira concentração de escravos no mundo atlântico da época [Haiti, desde 1804]), o Sul dos Estados Unidos tornou-se o coração mundial da economia de plantation, experimentando expansão acelerada. O número de escravos quadruplica entre 1800 e 1860; a produção de algodão aumenta dez vezes e alimenta a indústria têxtil europeia. Mas o Nordeste e especialmente o Centro-Oeste (de onde Lincoln é) desenvolvem-se ainda mais rapidamente. Apoiam-se-se em outro modelo econômico, baseado na colonização de terras do Oeste e no trabalho livre, e querem impedir a expansão da escravidão nos novos territórios.

600.000 mortos

Após sua vitória em 1860, o republicano Lincoln estava disposto a negociar um fim pacífico e gradual para os escravistas, com indenização para os proprietários, como aconteceu por ocasião das abolições britânica e francesa de 1833 e 1848. Mas os sulistas preferiram jogar a carta da secessão, como parte dos colonos brancos da África do Sul e da Argélia no século XX, na tentativa de preservar seu mundo. Os nortistas recusaram a separação e a guerra começou em 1861.

Quatro anos depois, e após 600.000 mortes (tanto quanto o total acumulado de todos os outros conflitos nos o quais o país participou, incluindo as guerras mundiais, Coréia, Vietnã e Iraque), o conflito termina com a rendição dos exércitos confederados em maio de 1865.

Mas os nortistas não acham que os negros estão prontos para se tornarem cidadãos, muito menos proprietários, e deixam os brancos retomarem o controle do Sul e imporem um sistema estrito de segregação racial, que lhes permitirá manter o poder por mais um século, até 1965.

Nesse ínterim, os Estados Unidos se tornaram a primeira potência militar do planeta e conseguiram por fim ao ciclo de autodestruição nacionalista e genocida entre as potências coloniais europeias, entre 1914 e 1945. Os democratas, que eram o partido da escravidão, conseguiram se tornar o do New Deal. Impulsionados pela concorrência comunista e pela mobilização afro-americana, eles concederam direitos civis, sem reparações.

Uma grande reversão da aliança

Mas, desde 1968 o republicano Nixon recupera o voto branco sulista ao denunciar a generosidade social que os democratas concederiam aos negros como clientelismo (um pouco como a direita francesa suspeita que a esquerda é islâmica e esquerdista quando menciona a discriminação antimuçulmana).

Ocorre então uma grande reversão da aliança, amplificada por Reagan em 1980 e depois por Trump em 2016. Desde 1964, os republicanos conquistam uma clara maioria do voto branco em todas as eleições presidenciais, enquanto os democratas sempre reunem 90 % do voto negro e 60% -70% do voto latino.

Enquanto isso, a participação dos brancos no eleitorado diminuiu constantemente, caindo de 89% em 1972 para 70% em 2016 e 67% em 2020 (em comparação com 12% para negros e 21% para latinos e outras minorias), o que alimenta a radicalização dos trumpistas no Capitólio e ameaça afundar a República dos Estados Unidos em um conflito étnico-racial sem saída.

O que concluir de tudo isso? De acordo com uma leitura pessimista, apoiada por boa parte dos grupos mais diplomados que votam doravante nos democratas - o que permite que os republicanos agora se apresentem como anti-elites, mesmo que continuem a mobilizar grande parte da elite empresarial, já que não conseguem seduzir a elite intelectual - os eleitores republicanos seriam "deploráveis" e irrecuperáveis. As administrações democráticas teriam feito de tudo para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, mas o racismo e a agressividade das classes populares brancas os impediriam de reconhecê-lo.

O problema é que essa visão deixa pouco espaço para uma solução democrática. Uma abordagem mais otimista da natureza humana pode ser a seguinte. Durante séculos, pessoas de diferentes origens étnico-raciais viveram sem contato umas com as outras a não ser por meio de dominações militares e coloniais. O fato delas recentemente conviverem dentro das mesmas comunidades políticas constitui um importante progresso civilizacional. Mas continua a gerar preconceitos e explorações que só podem ser superados com mais democracia e igualdade.

Se os democratas querem reconquistar o voto popular, independentemente de sua origem, então mais deve ser feito em termos de justiça social e redistribuição. A estrada será longa e árdua. Mais uma razão para começar agora.

THOMAS PIKETTY

Diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI.

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