CAÇAMBADA CUTUBA: Culminância, Decepção ou Interrogações?

Se a Caçambada Cutuba deixou tantas interrogações, cumpriu sua finalidade!

Antônio Serpa do Amaral Filho
Publicada em 19 de setembro de 2019 às 09:10

A Caçambada Cutuba é culminância! - disse Zola Xavier. A Caçambada foi uma decepção! - decretou Zekatraca. É esse o grande feito: desenterrar interrogações para que outros explorem a história por vários ângulos. Se a Caçambada Cutuba deixou tantas interrogações, cumpriu sua finalidade! -  asseverou Luciana Oliveira.

Elogiada por uns e contestada por outros, a película produzida por Zola Xavier levantou polêmicas! E isso é ótimo, porque polemizar o tema é mesmo um dos objetivos do trabalho. A polêmica é bem-vinda porque sacode a alma, e nela reside o vulcão da dúvida que leva ao questionamento e à pesquisa mais aprofundada! É lamentável, claro, a falta do depoimento do jornalista Sílvio Santos, último a descer da caçamba, no centro da cidade. Mas muitas foram as dificuldades; o coveiro do Cemitério dos Inocentes ficou com medo, a mãe de um vereador não quis gravar entrevista e até Flodoaldo Pontes Pinto Filho amarelou!

No conjunto da obra, Caçambada Cutuba é uma expressiva metáfora, e não um relato cartesiano, engessado numa narrativa certinha, alinhavada ponto a ponto, nos mínimos detalhes, como uma colcha de retalhos bem cosida pelas artesãs nordestinas.

Com o Teatro Guaporé super lotado, dia 13, o filme Caçambada Cutuba finalmente foi exibido para a comunidade e também para os estudantes da Universidade Federal, ontem. Tinha gente vazando pela ladrão lá no teatro! Calcula-se um público em torno de 650 pessoas ocupando cada centímetro do recinto teatral.

Esta é uma daquelas histórias esquecidas à beira da estrada da vida, um causo que ficou tão desbotado na memória do povo que acabou assumindo o status de lenda, conversa fiada de gente velha proseando na sala ou potoca de contador de estória em beira de calçada em noite de lua cheia. Só que não! Na verdade, o caso é um capítulo da página  política que teve origem lá nos velhos tempos do Território Federal do Guaporé e que desaguou no último embate entre Cutubas e Peles-Curtas nos idos empoeirados do Território Federal de Rondônia! Tanto quanto a Paixão, a Política exerce um fascínio incomensurável sobre a alma do homem e da mulher, levando o espírito das pessoas a se movimentar febrilmente nos limites mais extremados das relações humanas,  ali onde o amor e o ódio se encontram, separados apenas por um fio de cabelo, despertando às vezes a animalidade latente escondida há um bom tempo na pele de cordeiro de um dos cônjuge da relação amorosa, cujo epicentro, nesse caso da Política, é mesmo a paixão pelo exercício do Poder!

Mais de meio século nos separam dos fatos investigados! Remontando o cenário dos autos da novela da vida real, temos a figura do maior cacique político regional, o Coronel Aluízio Ferreira, que detinha o mandato de Deputado Federal, maior patente do poder político do então Território Federal, conquistado pela terceira vez, quatro anos antes, em 1958. O aluizismo tivera em alta, tinha imensa sede de poder e comandava o processo político, administrativo e eleitoral à moda do velho coronelismo, ou seja, com mão de ferro, uso da máquina administrativa e voto de cabresto. Do outro lado da disputa, perfilava-se o grupo de oposição, que tinha na casa de Marise Castiel, no bairro Caiari, seu Quartel-Geral. A esquerda bossa-nova da direita, a UDN, democratas, socialistas, comunistas, perseguidos, desvalidos, indignados e sonhadores perfaziam as hostes dos peles-curtas. O clima era tenso no Brasil todo! Em nível nacional, o bruxo Golbery do Couto e Silva já tramava a derrubada de Jango. Na província Guaporé, a centro-direita de PTB/PSD e PTN ia ao centro do ringue para um confronto com a centro-esquerda de PSP e UDN.

Foram várias Caçambadas: em 61, com a renúncia de Jânio Quadros, tivemos uma Caçambada Milico-Constitucional; os milicos atropelaram a Carta Magna de 46 e impediram a posse de João Goulart como presidente da República.  Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, colocou-se em pé de guerra, pôs em marcha a Caçambada da Legalidade, tomando a rádio Guaíba, armando o povo e realizando a Campanha da Legalidade, nos dias posteriores à renúncia de Jânio. Essa resistência desandou um pouco o caldo da Caçambada Milico-Constituicional. O Conservadorismo também engendrou sua Caçambada: rasgou a Constituição e a toque de caixa criou o regime Parlamentarista. Jango assumiu o posto, mas já numa República Parlamentarista feita às presas para entregar o poder executivo federal ao conservador Tancredo Neves. Preposto de John Kennedy, Lincoln Gordon, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, que esteve no centro das operações norte-americanas que apoiaram o golpe de Estado de 1964, desceu aqui no aeroporto do Caiari em 1962, fazendo pressão e vendendo o peixe da Aliança Para o Progresso! Uma marquetinguetagem do Bloco Capitalista em plena Guerra Fria.

Além desse alinhamento do conservadorismo, do macro para o micro contexto: pressão da Guerra Fria contra as Frentes Populares, Caçambada Milico-Constitucional de 61, a Caçambada do forjamento do regime Parlamentarista, a candidatura de Renato Medeiros enfrentava o Militarismo Orgânico. O oligarca Aluízio Ferreira já era Coronel e o seu apaniguado político, Ênio dos Santos Pinheiro, também era Coronel. Esse fogo todo na panela de pressão é que levou os Cutubas à decisão de endurecer com a Frente Popular liderada pelo médico Renato Medeiros, sendo portanto a culminância de todo esse processo efervescente, ideologicamente afinado com o desdobramento que viria em seguida, que foi a tomada do poder pelo militares, com o Golpe de 1964. 

Focando de perto, a coisa, foi mais ou menos assim: estávamos numa noite calorenta de 26 de setembro de 1962, na área suburbana onde funcionou a Rondasa, na avenida Lauro Sodré, no bairro do Olaria, quase defronte ao prostíbulo da simpática Delícia. O local era muito mal iluminado e nas laterais da rua havia enormes valas que serviam de escoadouro para as chuvas que começam no final de setembro. No clima geral da disputa, os ânimos estavam exaltados. O getulismo, que dera combustível ao cutubismo e regionalmente consolidara o poder nas mãos de Aluízio Ferreira por muitos anos, perdera força ainda em 1954 com o suicídio do caudilho de São Borjas, Getúlio Vargas. Por outro lado, o carisma de Renato Medeiro empolgava as massas, criava um clima de muita euforia junto aos segmentos de baixa renda e motivava a participação das multidões nos comícios. Segundo apurou Zolar, cerca de 4 mil pessoas participavam de um grande comício pele-curta. No palanque, Renato Medeiros, Carmênio da Taba do Cacique, Marise Castiel, Jaime Castiel, Anízio Gorayeb, e possivelmente Dionísio Xavier e Antônio Serpa do Amaral, ex-secretário do PSP.

De repente, vindo em velocidade considerável, da cidade sentido aeroporto, uma caçamba da prefeitura municipal, pilotada por um cidadão de nome Wilson, identificado pelo jornal Alto Madeira da época como funcionário municipal (José Saleh Moreb, cutuba, era o prefeito, Milton Lima, tb cutuba, era o governador), avançou por sobre a multidão, atropelando todo mundo, estraçalhando corpos, quebrando ossos, vitimando indistintamente homens, mulheres, jovens e velhos, e criando um coletivo clima de terror jamais vistos por estes pagos. Estava acontecendo o maior atentado terrorista da história política de Rondônia. O caos e o medo tomaram conta dos peles-curtas. Da tragédia emergiam choro, lágrimas, lamentos, gritos de dor dilacerante e desespero, seguidos por pedidos de socorro. Havia um cheiro de morte no ar, em meio ao corre-corre geral. As vítimas chegavam aos montes no Hospital São José  Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, pesquisou Zola, tem edições do jornal Alto Madeira registrando o rastro de sangue deixado pelo terror: um morto oficial e dezenas de feridos. Fora os mortos não-oficiais. No anúncio da missa de sétimo dia, publicado no mesmo Alto Madeira, o texto convida para o ato religioso em prol da alma daqueles que tragicamente desapareceram no comício de 1962. Consta, também, uma carta de Anízio Gorayeb, ex-vereador e jornalista, pedindo explicações sobre o atentado ao todo-poderoso Aluízio Ferreira. Luiz Lessa, antes de morrer, afirmou que o objetivo do atentado era matar o líder Renato Medeiros, que saiu ileso do episódio. Os peles-curtas encerraram a campanha com uma grande marcha pela Avenida Sete de Setembro, levando Renato Medeiros no ombro, e ganharam a eleição. Wadih Darwich foi nomeado governador. Mas a alegria durou pouco, porque, dois anos depois, artefatos mais mortíferos e convincentes que caçambas municipais, os tanques urutus do exército brasileiro, marchariam por sobre a democracia e encerrariam o mais acalorado, apaixonante e emocional embate da política Guaporé: a peleja entre os cutubas e peles-curtas. O status quo versus a rapa do tacho.

Por ironia do destino, talvez para atormentar a amnésia dos Guaporés, está escrito em latim na capa do Processo Penal que apurou o episódio da Caçambada Cutuba: o processo é do tipo Ad Perpetuam Rei Menoriam, isto é, para a perpétua lembrança do fato.

No miúdo agora: O advogado foi o Dr. Fouad Darwich Zacharias, causídico que arrolou e requereu a inquirição dos guardas territoriais José Faustino de Oliveira, José Rodrigues Maciel e Ladislau Nunes de Araújo, como testemunhas. Era a reação Pele-Curta ao atentado. Fórum: Ruy Barbosa. Escrivão: Durval Gadelha; Promotor: Dr. Hélio Fonseca. Juiz: Dr. Joel Quaresma de Moura.

Tiro o chapéu para as interpretações de Luciana Oliveira e Zola Xavier. Aos sociologicamente míopes recomendo um tratamento no CEOF - Centro Especializado em Oftalmologia!! Se é que são os olhos biológicos que estão funcionando mal...

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