No Brasil Império, chegada de vírus mortal provocou negacionismo e crítica a quarentenas
Na virada de 1849 para 1850, a tranquilidade que o Brasil vivia sob o reinado de dom Pedro II foi abalada pela chegada de um vírus devastador
Na virada de 1849 para 1850, a tranquilidade que o Brasil vivia sob o reinado de dom Pedro II foi abalada pela chegada de um vírus devastador. Velho conhecido no exterior, mas novidade no país, o vírus da febre amarela pegou o governo imperial de surpresa e avançou sem piedade sobre as grandes cidades do litoral, deixando um rastro de pânico e morte.
Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que, apesar da destruição que a doença produzia a olhos vistos no Império, houve políticos que negaram a realidade e procuraram minimizar a gravidade da epidemia.
Num discurso em abril de 1850, no Palácio Conde dos Arcos, a sede do Senado, no Rio de Janeiro, o senador e ex-ministro Bernardo Pereira de Vasconcellos (MG) garantiu que a doença não era assim tão perigosa e chegou a pôr em dúvida se seria mesmo a temida febre amarela:
— Eu estou convencido de que se tem apoderado da população do Rio de Janeiro um terror demasiado e que a epidemia não é tão danosa como se têm persuadido muitos. Talvez fosse mais conveniente que o governo não tivesse criado lazaretos [hospitais de isolamento] e feito tanto escarcéu. Julgo até conveniente que se institua um exame público a esse respeito, a fim de mostrar ao Brasil e ao mundo que não é a febre amarela o que reina hoje.
Para Vasconcellos, o poder público deveria rever a sua estratégia contra a epidemia. O senador sugeriu que o governo imperial parasse de gastar tanto dinheiro com médicos e enfermarias e deixasse os doentes livres para buscar os tratamentos que bem entendessem, ainda que contrários à medicina, inclusive com padres, curandeiros e charlatães.
— Entendo que, em um país livre como o nosso, não é até airoso ao legislador dar médico aos doentes. Quero ter a liberdade em minhas enfermidades de chamar a pessoa que julgar habilitada para curar-me, seja ela filha das escolas de medicina do Brasil, seja de nenhuma escola. Seria necessário demonstrar que quem não estuda nas nossas escolas não é capaz de curar e mata sempre. Entendo, pois, que, se o governo for um tanto frouxo em coibir a liberdade do cidadão a esse respeito, fará um serviço à saúde. Ao menos por mim, peço que me deixem curar com charlatães quando entender que me podem servir melhor do que os senhores doutores.
Apenas duas semanas após fazer esse discurso subestimando a gravidade da epidemia e questionando a autoridade dos médicos, o senador Vasconcellos morreu — justamente de febre amarela.
Jornais noticiam em 1850 a morte do senador Bernardo Pereira de Vasconcellos, vítima da febre amarela (imagens: Biblioteca Nacional Digital e Sébastien Auguste Sisson)
Ele não foi a única vítima da doença no Palácio Conde dos Arcos. Num curto espaço de dois meses, o Senado perdeu quatro parlamentares. Além de Vasconcellos, foram levados pela febre amarela os senadores Visconde de Macaé (BA), Manoel Antônio Galvão (BA) e José Thomaz Nabuco de Araújo (ES), avô do abolicionista Joaquim Nabuco.
Mesmo com essas mortes, os negacionistas do Senado não se renderam facilmente à realidade.
— Eu tenho algumas 22 pessoas na minha casa e não tive uma única delas doente — afirmou o senador Costa Ferreira (MA), em junho de 1850, referindo-se aos seus familiares e escravos.
— Infelizmente eu, na epidemia reinante, tive de ordenar dois enterros. Gostaria de me esquecer de todas as penas que então sofri — reagiu o senador Visconde de Abrantes (CE), indignado diante do comentário do colega negacionista.
— Se está tão apaixonado pelos defuntos que enterrou, então não está em estado de deliberar aqui no Senado — provocou, entre risadas, o senador Alves Branco (BA).
O senador Limpo de Abreu (MG) disse que aquela doença provavelmente não era a febre amarela, porque a mortalidade no Brasil, a seu ver, estava pequena demais em comparação com a que se via no exterior:
— Em Múrcia [Espanha], onde se declarou [epidemia] em 1804, de 134 pessoas que foram atacadas no princípio da invasão, apenas escaparam três ou quatro, sendo a mortalidade de 100% ou mais [sic]. Em Barcelona, em 1821, de 20 pessoas afetadas, escapava apenas uma. Em Gibraltar, em 1828, a mortalidade andou na mesma proporção. Aqui tenho estatísticas do Rio de Janeiro. Na enfermaria da Rua da Misericórdia, a mortalidade é de 18%. No lazareto estabelecido na Gamboa, pouco excede de 5%. A moléstia não é tão grave como se tem assoalhado. Não se justificam o terror e o pânico da população. Se a epidemia que se desenvolve em nosso país é em verdade o que se chama febre amarela, então o Senado há de permitir que eu diga que todos devemos dar graças a Deus por ter mandado, na sua cólera contra os nossos pecados, um castigo tão benigno.
Os números consolidados mostram que, ao contrário, a febre amarela não teve nada de benigna quando chegou ao Brasil. Apenas no Rio de Janeiro, capital de 200 mil habitantes, perto de 4 mil pessoas morreram em poucos meses na epidemia de 1849-1850. Transportando essa proporção para a atualidade, quando a cidade se aproxima dos 7 milhões de habitantes, é como se a doença hoje tirasse a vida de 130 mil cariocas.
Foi por causa dessa grande epidemia que o Brasil mudou um antigo hábito. Por lei, proibiram-se as sepulturas ao redor das igrejas e passou-se a abrir cemitérios longe do centro das cidades. A principal preocupação era evitar que os fiéis se infectassem.
Charge da Revista Ilustrada mostra febre amarela atacando foliões do Rio de Janeiro no Carnaval de 1876 (imagem: Biblioteca Nacional Digital)
Até então, excetuando-se alguma aparição episódica nos tempos da Colônia, o Brasil era um país livre da febre amarela. O vírus chegou primeiro a Salvador, em setembro de 1849, a bordo de um navio de bandeira americana que fizera escala em ilhas infectadas do Caribe.
A partir de Salvador, a doença se espalhou por toda a costa brasileira. Na capital do Império, os primeiros registros se deram em dezembro. Com variável intensidade, a febre amarela provocaria mortes no Brasil praticamente a cada verão pelos 60 anos seguintes.
Os negacionistas, apesar de barulhentos, não conseguiram prevalecer. Desde a primeira epidemia, o governo entendeu a gravidade da situação e ofereceu às populações atingidas os chamados socorros públicos, isto é, hospitais de isolamento, enfermarias, médicos, remédios e alimentos. O Senado e a Câmara sempre aprovaram a liberação das verbas necessárias. Em abril de 1850, por exemplo, o montante aprovado somou 100 contos de réis.
O próprio dom Pedro II manifestava publicamente preocupação com a febre amarela. O imperador mencionou a doença em diversas falas do trono, os discursos que ele proferia todo ano ao abrir os trabalhos do Senado e da Câmara.
— Os estragos da enfermidade afligem profundamente meu coração. O meu governo tem empregado todos os meios ao seu alcance para acudir aos enfermos necessitados — discursou dom Pedro II em maio de 1850. — Graças a Deus, vai diminuindo o mal. Espero de sua divina misericórdia que, ouvindo nossas preces, arrede para sempre do Brasil semelhante flagelo.
A cólera também apareceu com frequência nas falas do trono. A doença desembarcou no país cinco anos depois da febre amarela e, da mesma forma, provocou epidemias arrasadoras. As duas moléstias foram o grande gargalo sanitário do Império.
Todo fim de ano, dom Pedro II se mudava provisoriamente do Rio de Janeiro para Petrópolis, que se transformava numa espécie de capital de verão. No clima fresco da serra fluminense, a família imperial ficava a salvo das epidemias que brotavam na quentura úmida da Baía de Guanabara.
Trecho de livro de 1889 com estatísticas sobre as mortes por febre amarela no Rio de Janeiro (imagem: Biblioteca do Senado)
Pintura de François-René Moreau mostra dom Pedro II visitando doentes de cólera em hospital no Rio de Janeiro (imagem: reprodução)
No século 19, não existia no Brasil uma rede pública de saúde. As pessoas com posses se tratavam em casa, com médicos particulares. Os pobres, por sua vez, recorriam a instituições de caridade, como as santas casas de misericórdia. Assim que uma das tantas epidemias de febre amarela se instalava no Rio de Janeiro, o governo destinava recursos financeiros extras à Santa Casa, que corria para abrir enfermarias pela capital.
Houve senadores incomodados com a estratégia. Um deles foi Leitão da Cunha (AM), que se queixou da abertura de uma enfermaria para os desvalidos em Laranjeiras, bairro nobre do Rio de Janeiro.
— Há bairros inteiros da cidade onde não se tem manifestado um único caso da epidemia reinante. Entre eles, o das Laranjeiras. Pois foi montada uma enfermaria à Rua das Laranjeiras. Deslocar as providências dos bairros afetados da epidemia para ir, por assim dizer, enxertá-las onde ela não existe é realmente uma ideia que é extravagante e não tem justificação. Ninguém creia que em mim atua medo, receio ou falta de humanidade para com os infelizes afetados pela doença. Estou convencido, como todos estarão, de que é mais conveniente que sejam tratados nos lugares em que adquirirem a moléstia.
O senador Visconde de Olinda (PE) discordou quando o colega Costa Ferreira (MA) afirmou que os pobres infectados precisavam, sim, ser tratados à custa do dinheiro público.
— Reconheço, como o nobre senador, a necessidade em que estamos de tomar providências contra a continuação do mal que ainda nos flagela — disse o Visconde de Olinda. — Como particular, concorrerei para que se façam dessas obras de caridade; mas, como homem público, rejeito essa doutrina do nobre senador, que aproxima-se um pouco do socialismo. É um dos pontos do socialismo sustentar os pobres, e o nobre senador, sem querer, vai cair nesse erro.
— A discussão foi tão longe que até se me deu a patente de socialista. Não me falta mais nada. Já posso morrer. No fim da minha vida, sou socialista e sem eu o saber — respondeu, gargalhando, Costa Ferreira. — E por quê? Porque advogo a causa dos pobres moribundos. Se eu advogasse a causa de vadios, se pedisse socorro para homens sãos, então, sim, poderia ser tachado de socialista. Mas advogar a causa de desgraçados que se acham no leito da morte e expostos a morrer por falta de meios de tratamento será tudo quanto se quiser, menos socialismo.
Porto do Rio de Janeiro no fim do século 19: doenças chegavam do exterior a bordo de navios (imagem: Arquivo Nacional)
Oferecendo socorros públicos, o governo aliviava o sofrimento de doentes e até evitava que parte deles morresse. No entanto, não conseguia impedir a repetição das epidemias de febre amarela ano após ano. As medidas de prevenção eram muito pouco eficazes. Não por incompetência, mas sim pelas limitações científicas da época. Não se sabia qual era o agente causador da doença nem como as pessoas ficavam infectadas.
Só muitos anos depois se descobriria que a febre amarela é transmitida pelo mosquito Aedes aegypti (o mesmo que espalha a dengue). E ainda mais tarde se saberia que a febre amarela é provocada por um vírus.
No Brasil e no mundo, os médicos e cientistas se dividiam entre dois grupos na forma de encarar a febre amarela: os contagionistas, que acreditavam ser ela uma doença contagiosa, transmitida diretamente de uma pessoa infectada para uma saudável; e os anticontagionistas, defensores da ideia de que era o ar das cidades, pestilento por causa de pântanos repletos de lixo e esgoto, que fazia as pessoas adoecerem.
Para os contagionistas, a melhor medida de prevenção era retirar os doentes do convívio social, de modo a proteger os saudáveis. Isso incluía isolar os infectados (na própria casa ou em hospitais de isolamento) e impor quarentena aos navios procedentes do exterior, ou seja, deixá-los alguns dias parados a certa distância do porto, dando tempo para que a doença eventualmente se desenvolvesse, e só depois permitir o desembarque de mercadorias e passageiros.
Os anticontagionistas, por sua vez, afirmavam que o mais adequado era sanear as cidades, drenando pântanos, retirando o lixo de terrenos baldios e construindo sistemas de recolhimento de esgoto.
Perdido diante dessa falta de consenso, o governo adotava as medidas pregadas por ambas as correntes. As quarentenas impostas aos navios que chegavam aos portos do Império foram duramente criticadas por alguns senadores, que diziam que a exigência prejudicava a economia do Brasil.
— O que sofre o comércio com as quarentenas? Senhores, sofre muito — discursou o senador Dantas (AL), que concordava com a linha anticontagionista. — Os portos da Espanha no Mediterrâneo ficaram vazios quando passaram a impor a estúpida quarentena. As companhias de vapores [navios a vapor] suspenderam essas viagens e tomaram outra direção. Quando saí de Lisboa, fomos obrigados a oito dias de quarentena em Cádiz. Sabem os nobres senadores o quanto isso custou ao vapor francês em que eu me achava? As quarentenas são vexatórias e absurdas, só inventadas para manter o aparato de repartições, empregados e dependências.
Por causa da febre amarela, navios que iam da Europa para o Uruguai e a Argentina pararam de fazer escala no Brasil. Além disso, os portos de Montevidéu e Buenos Aires, para se protegerem, passaram a impor quarentenas longas demais às embarcações procedentes do Rio de Janeiro, prejudicando os interesses comerciais do Império.
O senador Dantas ainda atacou os hospitais de isolamento, para onde também eram levados os passageiros que desenvolviam a febre amarela durante o período de quarentena:
— Para se conhecer a inutilidade das medidas de isolamento, basta ir a um lazareto e ver o ridículo cerimonial, as cautelas pantomímicas prescritas pelos médicos e indignas de homens ilustrados.
O senador Jobim (ES), que era médico e adepto da teoria contagionista, ficava indignado quando os colegas questionavam as medidas de isolamento:
— A conservação da vida dos cidadãos é a primeira obrigação de um governo. Como disse Washington quando presidia os Estados Unidos: health is wealth, a saúde do cidadão é uma riqueza. Em Nova York, o estabelecimento de quarentenas tem sido origem de benefícios incalculáveis, repelindo a moléstia dessa importante cidade comercial. A Europa também adota as quarentenas.
Charge sobre a febre amarela publicada em 1876: o mosquito seria identificado como o transmissor da doença apenas muitos anos depois (imagem: Biblioteca Nacional Digital)
Na mesma linha de dom Pedro II, os ministros do Império afirmavam que não podiam se omitir diante da calamidade pública provocada pelas epidemias.
— Distintos médicos têm feito conferências nesta corte afirmando ser imperioso dever do governo estabelecer quarentenas e dizendo mesmo que seria crime proceder de modo contrário. O governo, portanto, prefere ser acusado de excesso de rigores a bem da saúde pública a ser increpado de negligência que nos possa ser tão funesta — afirmou em 1884 o ministro dos Negócios do Império, Franco Sá.
Hoje se sabe que tanto as medidas de isolamento pregadas pelos contagionistas quanto as de limpeza urbana defendidas pelos anticontagionistas são importantes para combater a febre amarela. Não havendo o combate ao mosquito, porém, elas são insuficientes para impedir as epidemias.
A situação no Brasil só mudaria no início do século 20, já na República, quando o médico Oswaldo Cruz, nomeado pelo governo para comandar a Diretoria-Geral de Saúde Pública, se dedicou a combater o mosquito Aedes aegypti. Apenas em 1909 o Rio de Janeiro finalmente seria considerado livre da febre amarela.
Charge da revista A Vida Fluminense em 1874 ilustra a devastação provocada pelas epidemias de febre amarela (imagem: Biblioteca Nacional Digital)
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Seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre a Agência Senado e o Arquivo do Senado, é publicada na primeira segunda-feira do mês no Portal Senado Notícias.
Mensalmente, sempre no dia 15, a Rádio Senado lança um episódio do Arquivo S na versão podcast, disponível nos principais aplicativos de streaming de áudio.
Reportagem e edição: Ricardo Westin
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de multimídia: Bernardo Ururahy
Edição de fotografia: Pillar Pedreira
Foto da Capa: Biblioteca Nacional
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